TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O MEU CRATO É SEMPRE ALGO MAIS



O Crato é um caleidoscópio. Ao girar o tubo, novas cores se associam, outras figuras se formam. Quem faz o tubo girar é a mão veloz das gerações humanas. A cada uma delas se permitem novas imagens. Imagens formadas por seus logradouros, largos, praças, locais do conteúdo vivo de cada moda, alguma mediana, daqueles que se diferenciam em razão do desvio padrão. Cada um pode dizer como são ou foram as imagens de sua geração. Falo da minha, considerando que afinal de contas é um ponto de vista. Uma mirada do panorama.

Entre minha casa e a estrada principal, uma ponte sobre o rio. Aquela construção de ferro, cimento e pedra, era um esparadrapo sobre o corte profundo das águas. Sob ela o leito seco e branco de areia lavada, o desprendimento de massas líquidas fenomenais, zoando por sobre todos os sons e alagando suas margens complacentes. Nesta ponte engenheiros da SUDENE implantaram um linígrafo para quantificar a vazão das águas. Para sempre a ponte passou a ser o território do progresso e do desenvolvimento econômico e social.

Mas outro significado havia em corte feito no morro do seminário para que a estrada passasse. Ao contrário aquele era o local das traições, o ponto mais nevrálgico da via, onde as almas te perseguiriam, quem sabe Vicente Fino, sob a forma de um jumento, nos esperasse. O corte lanhava a segurança do transeunte e dele se alimentavam os mistérios desconhecidos que costumam de repente aparecer.

Mais adiante, antes do seminário Alemão, havia a desembocadura das vielas do recreio. Célio Silva, às seis horas da tarde em estado de embriaguez, com seu violão ao ombro, paletó branco, chapéu à moda gangster dos anos 40, ia para a zona soltar seu canto. Célio imitava com perfeição o vozeirão de Chico Viola. Neste território plantavam as raízes da boemia.

Entre o hotel Tabajara e o início da João Pessoa a transição se completava. Mas no Crato Palace Hotel, uma boate, no seu topo com as filhas e parentes de Lindalva aprendi a dançar. Foram excelentes professoras, mas o aluno nunca foi muito aplicado. Nesta transição, entre a infância e a adolescência, queimei minha floresta na cintura das mulheres.

A João Pessoa era tudo em acontecimento, por acontecer e acontecido. Nela a narrativa tanto poderia comentar a pastagem, como leite ou o queijo. Tanto poderia ser uma aula rígida da Escola Técnica de Comérico, quanto uma mentira mitológica de seu ou as amostras das lojas que se infiltraram em ambos os lados da rua.

No alto do seminário a igreja em formação. No barro vermelho a igreja em silêncio. No alto de São Francisco as portas fechadas do esquecimento. Na rua Duque de Caxias a elite masculina se formava e no seu final a cadeia pública interditava o trânsito.

O cemitério. O horror da morte. Não se tratavam os mistérios irrevelados mas um ácido que derretia a alma de medo. Um aperto de solidão, um escurecimento mudo, cheiro de cravos de defunto, velas derretidas, um limbo mais limbo ainda posto que difuso.

No arco à esquerda da altura do alto de São Francisco, num fim de rota, uma mistura de explosão de sentimentos e de grandes decepções. Ali pela primeira vez dancei ao som da Orquestra Românticos de Cuba, elegante, num salão mais largo que a imaginação nunca antes ou depois pode alcançar. Pois foi ali mesmo que um casal mediu os atos que as promessas do aconchego da dança prometiam. Após acontecer, um arrependimento de virgem em ruptura, o choro amargurado, o escândalo na sociedade e ela deixou de estudar, não mais foi às festas ou visitou a praça. Tornou-se como uma estátua no jardim de sua casa, pálida e abandonada. Neste local os rumores das paixões e suas contradições.

Da Praça Siqueira Campos se disse. Do Cine Cassino, uma geração anterior e a posterior cultua como um ícone da cidade. Mas o Cine Rádio Araripe na Nelson Alencar e o Moderno foram portais tão poderosos para emoções, razões e sonhos, igualados apenas às histórias de trancoso nas noites enluaradas da calçada rural da minha casa.

No Poço do Jatobá a fuga das galáxias. Por isso mesmo é que em alguma noite de sonhos, sonhei andando de mato a dentro do sítio em que morava, subi o alto dos cochos e sai num vale amplo, verde, com o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro ao fundo. Quantas possibilidades aquele nonsense guardava. E por ali, no Poço do Jatobá, é que me fui.

E voltei para encontrar um monte de gente: Socorro Moreira entre a madrugada e a noite seguinte, O Salatiel e seu espírito de corisco escondido na caatinga. Armando Rafael que cutuca abelhas e assim faz o seu mel e Carlos Rafael (onde anda este sujeito? Alguém o viu por ?). Grata surpresa de um Lupeu Lacerda e do Vinícius Leonel os quais lamento não escreverem mais. O encontro de um poeta, que poeta noite dia, noite e dia sem parar, o Domingos Barroso. A harmonia da sisudez poética do Gustavo Rios e do Antonio Sávio. A cantata vocacionada do historiador Océlio Teixeira. O espírito de beija flor, encantado e sutil do nosso poeta das imagens, o Pachelly Jamacaru. O silêncio empedernido do meu elo de tempo, Abidoral, a última vez que nos falamos, não sei se ele lembra, foi na Rua do Resende aqui no Rio. A Glória! Onde foi que a glória se escondeu logo nestes tempos insossos? A Amanda cavoucando textos de mulheres exatamente onde estes surgem. O Bantim, cuja bola me tornei talvez como seqüelas de uma certa sorveteria. O Flávio, é difícil dizer, falar, enumerar, este ermitão do da chapada. Difícil para não parecer nepotismo. O nosso Emerson, bravo na estampa, de uma alma mansa, mas um manso de sertanejo, um tanto rude, muito de singeleza e possuidor da raiva pelos injustiçados. Antes que ele acabe o jogo e leve sua bola para casa, o nosso Dihelson em sua metralha de indignação e enternecimento, simultaneamente na mesma frase. Esta gente ampla e variada que vive como gosto viver.

Pois a todos vocês dou-lhes o presente de um mês sem minha presença. Estarei num perto longe, no litoral do Ceará, usando umas roupas que duram mais de 20 anos, uma sandália de tantas férias, chapéu de palhas envelhecidas, óculos escuros, muito mar, peixe e conversa fora.

7 comentários:

Dihelson Mendonça disse...

Zé, Obrigado pela "metralha de indignação e enternecimento". É um dos maiores elogios que recebi. O ser humano é um misto disso tudo. Nos indignamos com certas coisas, nos enternecemos com outras. Bem que eu gostaria de ser budista, zen, ficar indiferente tanto à dor e ao prazer, mas isso também pode ser um mutilamento do pensamento, essas pessoas que nao se abalam com nada, geralmente tem o coração de pedra!

A arte, a música nos torna muito sensíveis. Queremos mudar o mundo, e o faremos, embora isso seja muito complexo de se analisar. Porque alguns podem dizer: Cada um quer mudar o mundo para fazer parecer à sua imagem e semelhança, como se houvesse um padrão correto. E há ?

São tantas perguntas...
Deve existir alguma ordem por trás de todo esse caos chamado mundo.

E nós, somos seres caóticos, vulneráveis, mesquinhos, frágeis, reles cadáveres ambulantes que procriam, como o disse muito bem o Fernando Pessoa.

Cada um de nós é a soma dos muitos opostos.

Um grande abraço,

Dihelson Mendonça

Pachelly Jamacaru disse...

Zé, obrigado pela parte que me toca na sua memorável memória!
grande abraço!

socorro moreira disse...

Que viagem ! O caminho até Paracuru , fizemos contigo ... e ainda sigo !
Você , sempre estampado nas ruas , eventos ,e caras da nossa cidade.
Certamente possue o zoom de todos os fotógrafos e poetas da nossa tribo.
Claro que lembro do Célio ,da boemia no linho branco , que ele desfilava cantando !
Meus medos (já desfeitos)se reintegram por encanto ... de um tempo , romanticamente cubano !
E se teu Crato é sempre algo mais ... por que trocá-lo pelas brumas de Avalom ?
Tem Siqueira Campos , ladeira da Batateira , siriguelas do Lameiro , que esperam teu olhar , tua saudade , tua fome ...
Pois vá ... ! Gaste sua pele , no litoral Ceará ... Esqueça a Chapada , fique de férias da gente ... Deixe - me com raiva dessa ausência !

Rindo ... Mas é de saudades !

socorro moreira disse...

* Avalon

Amanda Teixeira disse...

Eu gosto de dar atenção aos posts das "meninas", Glória e Socorro, mas sou leitora assídua dos teus também... muito belos! Dá sempre uma invejinha do Crato "de vocês", dá vontade de ter vivido esse Crato em outros tempos...

Marcos Vinícius Leonel disse...

Muita generosidade sua, meu camarada, como sempre.

Estarei de volta em breve.

Um abraço

Emerson Monteiro disse...

José,

Que bom se ter um Crato em nossos corações.

Abraços.