Num ensaio sobre a literatura de Guimarães Rosa, Benedito Nunes coloca em ordem crescente de valor as qualidades que Rosa perseguia no texto: o enredo, a linguagem, a poesia e a metafísica. É curioso que mesmo sendo um escritor pós-freudiano, ele não tenha se referido à psicologia. E há quem afirme que, depois de Freud, nenhum artista ficou imune à psicanálise.
Mario Benedetti, um uruguaio da geração de Júlio Cortazar e Carlos Fuentes, seria um deles. "Quem de nós", novela publicada em 1950 e só agora editada no Brasil pela Record, é uma longa sessão psicanalítica fora do divã, com poesia e linguagem bem cuidada, um enredo cortaziano surpreendente, em que não falta metafísica.
Dividida em três partes, a primeira delas é a sessão de Miguel. Sozinho em casa, depois que a esposa Alicia decidiu abandoná-lo e partir em busca de Lucas, um amigo que completa um triângulo amoroso de adolescência, ele senta-se e escreve. Apesar da escrita instigante, da crua avaliação que o personagem faz de si mesmo, imaginamos tratar-se de mais um livro em que vários personagens expressam os seus pontos de vista sobre um mesmo tema, no caso, o amor conjugal mal sucedido e a separação. Chegamos a lembrar o conto Num Bosque, do japonês Ryonosuke Akutagawa, em que uma mesma história é relatada de formas diversas, segundo a ótica de cada narrador. Miguel analisa a esposa, o amigo Lucas, os dois filhos, os pais, a amante e, principalmente, a si próprio.
O livro poderia ser um enfadonho consultório sentimental, se Mario Benedetti não fosse um perspicaz investigador das virtudes e dores do homem, sem o medo de vasculhar feridas, fazendo revelações surpreendentes e originais a cada página: No invejoso existe uma vontade, uma atitude de esforço ou, no pior dos casos, de capricho, que indiretamente o faz culto, laborioso, incansável. A inveja é o único vício que se alimenta de virtudes, que vive graças a elas.
O segundo personagem a se deitar no divã de Benedetti é Alicia, a esposa que toma a mesma decisão de Nora, a heroína de "Casa de Bonecas", de Ibsen: abandonar a casa, o marido e dois filhos. A diferença é que Nora deixa o mundo doméstico, onde viveu oito anos, para pensar em si mesma e tentar compreender as coisas. Alicia deixa a casa onde viveu onze anos, escreve uma carta e revela: Não posso mais, vou embora com Lucas. Sua busca possui endereço e destinatário.
O leitor imagina que tudo será previsível no terceiro capítulo, que por motivo óbvio se chama 'Lucas', e certamente terá as confissões do suposto amante, fechando a novela. Mas Benedetti é surpreendente e puxa o tapete sob os pés do leitor. Lucas é um jornalista que escreve contos e em vez de revelar-se em tom confessional, como Miguel e Alicia, prefere transformar o drama que vive num texto literário. Os personagens assumem nomes fictícios no conto de Lucas, narrado no corpo principal da página. Em notas de rodapé, o narrador Lucas explica como elaborou o conto, referindo os nomes reais dos personagens. São duas histórias se narrando dentro de uma mesma história, o que deixa o final da novela em aberto. Um quebra-cabeça ao estilo do que será desenvolvido por Cortazar no seu romance mais famoso, "O Jogo da Amarelinha".
Mario Benedetti nos diz que por mais real que pareça, tudo o que acabamos de ler não passa de uma invenção. É que a arte nunca deixa de ser uma mentira; quando é verdade, já não é arte e entedia, porque a realidade é apenas um irremediável e absurdo tédio.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.
8 comentários:
Guimarães Rosa, em "Tutaméia, cita Tolstói:
"Se descreves o mundo tal qual é, não haverá em tuas palavras senão muitas mentiras e nenhuma verdade."
Em "Metafísica do Grande Sertão", Utéza transcreve o trecho de uma carta de Rosa ao seu tradutor italiano, onde ele diz:
"Ora, você já notou, decerto, que como eu, os meus livros, em essência são 'antiintelectuais' - defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana (...).Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los:
a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto;
b) enredo: 2 pontos;
c) poesia: 3 pontos;
d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.
O crítico alemão Gunther Lorenz insistia em ver nele descrições concretas e realistas. Sobre isso, Rosa disse:
"Não, não, não... Eu gosto de apoio, o apoio é necessário para a transcendência. Mas quanto mais estou apoiando, quanto mais realista sou, você desconfie. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para o salto. Aquilo é o texto pago para ter o direito de esconder uma porção de coisas... para quem não precisa de saber e não parecia... Você está entendendo?"
Na minha humilde opinião, Guima ia além da psicologia e da psicanálise... creio que as levava em conta, sim (talvez estejam no ponto "b", o do enredo); mas tinha outras preocupações, que para ele pareciam mais profundas. E há mais coisas em Guimarães Rosa do que supõe nossa vã filosofia. rs
Beleza de comentário!
Gostaria de acrescentar ao que já está acrescido em seu comentário, Amanda, a habilidade de Guima, como você chama carinhosamente, em utilizar os ritos de passagem para a transcendência dos seus personagens. Um verdadeiro mestre.
Abraços!
Sim, bom lembrar! A Maria Zaira Turchi escreveu um artigo muito interessante em "Literatura e Antropologia do Imaginário" sobre o conto "Esses Lopes", do Tutaméia. Ela vê este conto como uma viagem iniciática, onde a personagem principal passa pelos arquétipos da jornada heróica, desde a inocência, o sofrimento e o abandono até a transformação em mártir e guerreira, para então voltar ao estado inicial de inocência. Todas essas fases são assinaladas pelas atitudes que representam grandes mudanças na vida dela. O conto "Páramo", de Estas Estórias, também é bem claro (se é que se pode dizer que algum texto do Guima é verdadeiramente claro), nesse sentido.
Parece que o Rosa verdadeiramente soube ver o quanto "o mundo é mágico".
Um adendo: os créditos do meu comentário não são meus, mas do próprio Rosa, que suscita sempre infinitas indagações...
Mais um comentário...
(sei que não deveria me deter ao Guima, mas não consigo evitar, é mais forte que eu)
Eis o trecho que encontrei na entrevista concedida por Rosa a Gunther Lorenz:
"Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Goethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil,
Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida"
Talvez esteja aí a chave para leitura de Grande Sertão: Veredas como uma "autobiografia irracional".
Talvez esteja aí a chave para se entender misteriosa morte de Rosa, ocorrida três dias depois da posse na ABL, um evento adiado durante quatro anos...
Talvez esteja aí a explicação para a enigmática declaração: "às vezes eu, Rosa, penso que sou um conto escrito por mim mesmo"...
Marcelo! Até aqui, Brutus? Que surpresa. Tentando mais uma vez alfinetar (ou apunhalar?) o Rosa... sentiu falta das discussões nas comunidades, foi? Use a peneira, moço. A peneira.
E, afinal, quem não escreve o conto da própria vida?
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