TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Chuva aos borbotões

Emerson Monteiro

Quem lê Cartas do meu moinho, de Alphonse Daudet, bem pode avaliar o que se passa dentro da gente nessas épocas de chuvas constantes em que se transformou o Cariri no inverno do corrente ano. Quando menos se espera, o tempo fecha e cai um toró, algo do tipo de brincadeira de semideuses. Nem precisa vigiar o nascente e recolher a roupa do varal, pois as nuvens carregadas penetram resolutas no vale vindas também do sudeste, sorrateiras, de surpresa aparecem poderosas de sobre as matas da serra e são estas as mais pesadas e chovedeiras.

Assim tem sido há mais de um mês, desde janeiro, fevereiro. No início, eram anunciadas por relâmpagos e trovões, trazendo as águas do céu intensas deste ano, querendo mesmo contestar a todo preço teses de estio dos profetas sertanejos.

Enquanto isto, cá dentro permanecemos na toca, receosos do escuro nublado das tardes molhadas, querendo reavaliar um mundo que chega apenas irreal, por meio do espelho da internet e dos arroubos asmáticos da televisão, puro esmalte dos tempos encobertos de versões e nenhuma consistência, qual apenas de esguelha víssemos a paisagem nas rápidas frestas de muros que passam velozes ao lado deste comboio em marcha continua, nua, das vidas embaladas no vento.

Testemunhar existências teimosas desse lado de mundo traz do peito a fala para perto dos dentes e, depois, indiferente, ela escorre pegajosa nos lábios, no pescoço, nos dedos, líquido metálico de histórias que repetem sonhos antigos, fases em que corriam, nas ruas ainda calmas de poucas décadas atrás, os mistérios soltos em formato de esperanças coletivas, bestas bravias, fogosas. Outro dia, no canal do Senado, via, pois, um documentário a respeito da Revolução de 64. Imaginei de relance o que haveria de ter ganhado forma, caso os acontecimentos seguissem as trilhas interrompidas em que vieram até ali. (Mera ficção, licença dos desocupados.) Algo mexeu na saudade, ao som dos violões de rua, das massas poderem escolher e determinar seus destinos, método sagrado das transformações gerais...

Puros coices de vontade contrafeita, a coisa que os caminhos percorridos invadem só o território das circunstâncias permitidas pelas mãos totalitárias do poder temporal da média aritmética da mediocridade, nas marcas deixadas em forma de folhas e palavras, na velha A ideologia do sociedade industrial, de Herbert Marcuse, a desaguar logo adiante no O desafio americano, de Jean-Jacques Servan Schreiber, obras inevitáveis à compreensão daquelas horas tardias.

Mas sonhamos, sim, a qualquer custo. The Beatles. The Rolling Stones. Woodstock. Blow-up. Os hippies. A estrada. O tropicalismo. Essa ressaca ocidental. O zen. I Ching. O arroz integral. Uma história bonita de tempos imemoriais que habita corações solitários da melodia imortal dos seres vivos. Semelhantes às nuvens e à névoa das manhãs de inverno, envolvem de alvo carinho os tempos de nossas aventuras espirituais deixadas aqui conosco, falas caladas de calendários amarelecidos nos riachos de ouro a rolar nas encostas da consciência. Projetos refeitos numa viagem eterna, sem volta à estação da impermanência, rumo do amor e da verdade, em si próprio, eis o tema.

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