Nas sociedades modernas a referência a políticas públicas é uma espécie de ladainha em louvor ou em confiança com a civilização. Acontece que políticas públicas são regras de viver coletivamente, portanto têm muito daquilo que se chama alma, ou cultura ou hábitos de um povo. Também são intenções e ações da sociedade, normalmente pelo seu Estado, em torno da melhoria da vida material das pessoas. Portanto, assim sendo, políticas públicas expressam de algum modo a realidade cotidiana da sociedade. Então vamos às políticas de segurança aqui no Brasil e em especial ao Rio de Janeiro.
Antes um adendo. Em se concordando que política pública é o que se disse, convenhamos que a educação de um povo e a classe social das pessoas tem enorme efeito sobre a realidade vigente. Por exemplo, é comum que pertença às classes médias e mais ricas aqueles mais educados (só não é verdade absoluta dada a natureza de "cassino" que é o capitalismo"). Desse modo, uma referência ao recente debate sobre o filme ganhador de um título internacional o Tropa de Elite. Aliás, sobre uma perna do debate (não me refiro ao filme) que era mais ou menos assim: estes usuários de drogas financiam os traficantes, portanto pau nos usuários e nos traficantes. Acabemos com a hipocrisia, chega de mansidão, pau em todo mundo. Aí se revelou o verdadeiro espírito da política pública de segurança no Brasil: pau nos pobres, nos marginais e nos desequilibrados. Acontece que o pau é executado por forças públicas e privadas e estas também têm modos próprios e, uma vez delegadas da violência, tome violência espanada. Dois exemplos típicos a seguir.
Um homem de classe média. Dançarino de sucesso, professor de referência e grande sonhador. Aposenta-se, confronta a realidade e se recolhe na pequena cidade litorânea do Ceará em que nasceu. Por lá um grupo de jovens pede que os ajude a dançar bem o forró e lambada. Ele, retornando ao desejo deles, propõe algo mais. Disso nasce um grupo de dança e depois uma Companhia cuja qualidade já é notória. O impacto social é enorme. Mais de quatrocentas crianças disputando vagas na companhia. Crianças dançando como rumo de vida, sem o tédio das crianças de classe média cujos pais as entopem de coisas por fazer: escola comum, curso de computador, curso de inglês, escola de música, balé e mais as traquitanas dos shoppings. Como dizia o impacto é tamanho que se reflete na educação formal: três municípios vizinhos passam a incluir aulas de danças nas escolas públicas. Os professores são os alunos mais avançados da companhia. Outro efeito da Companhia é a mudança de eixo no turismo internacional que inunda o nordeste de estrangeiros. Um turismo predador, baseado em sol, cerveja e prostituição, inclusive infanto-juvenil. A cidade passou a oferecer cultura, agregou valor à qualidade do turismo local. No final toda a sociedade ganhou, especialmente aquela mais aquinhoada em recursos materiais.
Qual o desdobramento da história de segurança? Um grupo de policiais militares passa a perseguir o professor. Vêm nele uma oportunidade de ganho e punição. Especialmente ganho. Numa das ações, num local ermo e distante do município, quando o professor sozinho se desloca, um grupo de seis homens armados, faz uma enorme pressão sobre o mesmo. Por final alegam que encontraram maconha suficiente para caracterizá-lo como traficante e o levam preso para a delegacia. O delegado nem surge na cena, mas por trás deixa um "investigador" fazer toda a "negociação": seis mil reais para soltar o professor. Aproveita que o juiz saiu no final de semana da cidade e prometem deixá-lo preso por três dias até que o juiz retorne. Mais tarde os policiais achacadores vão ter com o "investigador" para receber sua parte, mas não havia tal coisa. Espalham pela cidade que além de ser traficante o professor se acompanharia por um rapaz menor de idade. Finalmente o professor é solto, humilhado socialmente e a Companhia de Dança entra em crise de realidade.
A situação hoje é a seguinte: o professor está sendo processado por tráfico de drogas, com o processo no juizado. O juiz: espera-se (apenas se espera) que tenha o senso do conjunto, tenha a visão das forças de segurança e adote uma posição segura, não atue insensivelmente apenas como burocrata medroso.
O outro dado. No Rio de Janeiro. Um rapaz, negro, um tanto feio para os padrões globais, vai visitar a ex-sogra numa favela no caminho entre o trabalho e sua casa. Enquanto conversavam chegam soldados da polícia militar dizendo que ele seria um determinado traficante. O rapaz se defende dizendo que não. A ex-sogra diz que se trata de um trabalhador, os policiais empurram a senhora, algemam o rapaz e o põe num carro da polícia. Passam com ele por chefes das milícias (todas oriundas das forças policiais) para observar se os reconhece, mas não é reconhecido. Circulam com ele por um hospital da Zona Oeste da cidade onde um alcagüete recém agredido por bandidos, dado o seu papel, estava em tratamento, e este não o reconhece. Não satisfeitos levam o rapaz para a delegacia de polícia. Nisso a família do rapaz está chegando e junto ao delegado o defende. A mãe do rapaz, uma senhora com um pouco mais de um metro de sessenta, é brutalmente empurrada pelos brutamontes. Segundo a senhora, homens imensos, com olhos fixos e siderados, pareciam sob efeito de algo além deles. Afinal o delegado leva o rapaz, com o horror da mãe que já imaginava fosse o rapaz ser torturado, para ser submetido a listagem de passagem policial. Inocente é liberado e tudo fica por isso mesmo. Nenhuma medida contra os soldados e nenhuma proteção para a família. Nesta altura, ninguém irá fazer nada, o medo de retaliação é tremendo.
Então os "educados" deram a senha para os homi. Os governadores não têm o apoio social para efetivamente proteger a cidadania. A política de segurança é....todos são vítimas potenciais, especialmente os mais pobres, diferentes e marginais. Quanto a civilização ela é de absoluto desperdício, incapaz até mesmo de se valorizar como um futuro promissor.
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