Ali estava bem na sua frente e era um deslumbramento. Parara ofegante e atônito, como um menino que balbucia as primeiras palavras de amor para a namorada. Saíra com a inglória missão de comprar um presente para o aniversário do filho, esta difícil e impalpável arte de calçar a matéria no sonho alheio. De repente, diante dos seus olhos, como se pronunciasse o abracadabra ou o abre-te-sésamo aparece o objeto de todos os desejos da sua já distante infância.
Fôra pirralho pobre e desde cedo precisara aprender a inventar os seus próprios brinquedos. A duras penas , aprendera a fazer o pião com um tronco de goiabeira e um prego; o “triângulo”, mais simples , o precedera, quando entortou a extremidade de um arame e afiou a outra ponta numa pedra de amolar facas. Depois viera o caminhão, doce enlevo da sua meninice, que fabricara desfazendo uma velha caixa de madeira e dela construiria todos os módulos: a boléia, a carroceria, as rodas ( a mais difícil tarefa) e até os amortecedores -- feitos das aspas metálicas que recobriam a caixa e que davam ao carrinho um discreto molejo, tão importante para as manobras mais radicais. As bolas de gude ( de aço ,as preferidas) eram conseguidas dos mecânicos da redondeza, que as tiravam de rolamentos “gripados”. Depois vieram os carrinhos de rolimã , os patinetes construídos com tábuas e rolamentos, que eram o terror do sono de todos os vizinhos Fez-se clone de Ícaro ,também , montando “pipas” com papel celofane, pedaços de madeira e “grude de goma”. Os “papagaios”, ao serem empinados, como que alçavam aos céus o dourado enleio da sua infância ( enleio que um dia se perdeu no espaço, ao ser cortado pelo brusco cerol da adolescência). .
Uma vez , pisando na sombra do pai, tinha tido um encantamento igual ao de hoje : diante de si um ônibus feito artesanalmente, de quase meio metro, com inúmeras cadeiras no seu interior , as laterais fabricadas de lata e pintadas, onde se lia, em letras transversais: “Viação Cometa”. Lembra, como se fora ontem, atanazara tanto o pai para comprar aquela maravilha, que terminou por ganhar o mais comum presente do seu tempo: uma surra monumental.
Hoje, no entanto, se sentia o mais feliz homem do mundo: podia dar ao filho o mais almejado presente da sua vida de guri. Comprou-o, trêmulo, como se tivesse voltado trinta anos . Cerrou os olhos um pouco, enquanto o vendedor lhe trazia o troco, e se viu apenas de calção listrado, com barbante na mão, à guisa de volante, e dirigindo cuidadosamente aquele ônibus que por tantos e tantos anos foi o cometa de todos os seus desejos. O tilintar do troco no balcão o fez viajar , num átimo, três décadas de volta. Tomou do embrulho valioso e partiu célere para casa, na expectativa de ver ,nos olhos do filho, a felicidade que poderia ter brilhado nas suas próprias retinas tantos anos atrás...
Mal abre a porta, berra, ofegante :
---Filho, olha o presente de aniversário que eu trouxe prá você!
O menino corre e rasga o invólucro, vorazmente, sem nenhum critério artístico. De repente emerge do papel picotado , o ônibus reluzente. O filho , porém, não reluz como o ônibus, o olha sem entusiasmo e pergunta, sem graça:
---- Pai, o que é que ele faz, hein? Tem controle remoto, anda sozinho?
O pai, triste,surpreso, ainda pensou em explicar que aquele carrinho fazia tudo: andava sozinho, corria, subia ladeiras e rampas, até voava e tinha controle remoto sim: A imaginação. Mas já não adiantava, o guri, hipnotizado, agora fixava seu pensamento apenas no video-game e o sonho de infância do pai estava ali jogado no chão em total desamparo --- um ônibus que capotara , perdera em algum lugar a sua força lúdica, e era agora um veículo enferrujado, obsoleto , sem rumo claro e sem destino previsível...
J. Flávio Vieira
Um comentário:
Zé: já tive decepção ao contrário do desfecho deste conto. Quando ganhei pela primeira vez um carrinho de corda. Não tinha graça nenhuma. Era de um tédio sem fim. Saia correndo numa reta e só. Não tinha barulho de motor pela minha boca, não arranhava a marcha, não gemia nas ladeiras, não dobrava na estrada, não fazia longos distância. Era apenas a corrida de uma barata tonta. Mais que bicho mais sem graça. Por isso mesmo nunca gostei destas coisas. Agora é inegável que o tempo nos mistura, você mesmo já um tanto recifense, um bocado universal, nomeando "rolimã" para que outros lhe entendam quando era "rolamento". Dizendo "pipa" num tom bem sudestino para logo escorrega no "papagaio". E vamos misturando, ora ganhando, ora perdendo e por vezes se agarrando.
abraços
José do Vale
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