TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A Primavera Outonal de Agapito

















Nunca fora de trabalho além da conta. Filho de família razoavelmente abastada , foi deixando a vida fluir lentamente, sem maiores empurrões. A duras penas terminou o curso científico, como chamavam na sua época. Depois foi herdando um tanto de cada parente, à medida que a morte ia fazendo a chamada e, por fim, já de posse de um considerável número de imóveis, com uma rendazinha garantida, pôde dar-se ao luxo de ficar naquela vidinha que sempre pedira a Deus. Os amigos mais próximos não lembravam de tê-lo visto fazendo uma outra coisa além de pastorear o tempo, espezinhar a vida alheia, exercitar-se levantando um ou outro copo. Afinal, se pela manhã nada fazia, à tarde continuava o mesmo serviço, que desfazia à noite para ,com desvelo, reiniciar no dia seguinte. Era uma espécie de versão ociosa de Prometeu. Suor seu não se via nem em outubro, na feira, no pino do meio dia. Alguns companheiros de rodinha de praça até achavam que aquela vida mansa era uma compensação da natureza: Não conseguiam entender como sua mãe passara nove meses com ele na barriga para, ao nascer, sapecar o terrível nome de Agapito. Aquilo não era nome próprio não senhor, era quase um palavrão e nem apelido carinhoso dava: PiPi , Gagá, Totó... parecia tudo nome de cachorro. Dentre as estressantes atividades do nosso amigo, a que ele desempenhava com mais rigor e pontualidade era a de "Peru de Gamão" : passava as horas da tarde, circundando os jogadores mais assíduos e dando seus nem sempre bem-vindos palpites. Esta atividade, apesar de um pouco cansativa, tinha duas vantagens: ficava ali ouvindo todas as novidades quentes e fofocas cabeludas da cidade e, como não jogava, nada gastava, já que uma outra característica sua era de ser seguríssimo e andar sempre com uma cascavel em cada bolso. Talvez por isso mesmo fosse solteirão convicto; até que tivera oportunidades de mudar de estado civil , mas mulher, por mais bonita que se apresentasse, para ele aparecia com cara de "Comunhão de Bens" , com cheiro de "Pensão Alimentícia".

Por isso, ninguém acreditou quando a manchete quentíssima estourou no Gamão: Agapito , o somítico mão de figa, último reduto da celibatarismo na cidade ia se casar e, pasmem vocês, como uma mocinha honesta , mas de poucas posses. Os mais próximos lembraram, então, que haviam notado seu absenteísmo na roda de Gamão , há já algumas semanas, mas imaginaram que poderia se tratar de uma causa mais plausível: doença, preguiça ou alguma intriga com alguém do jogo, coisa de todo não pouco freqüente. Casamento, porém , era uma coisa totalmente imprevisível até para Nostradamus.

Dias depois, souberam da consumação do matrimônio. Cerimônia íntima, sem alarde, com a presença de poucos familiares. O que se comentava é que foi paixão de velho, coisa arrebatadora, sem explicações maiores. Conhecera a moça casualmente na vizinhança, quando ela buscava alugar um imóvel , já que viera dos Inhamuns estudar em Crato. Em meio às negociações surgira aquela faísca inexplicável, que derretera aquele pétreo e insensível coração. O primeiro toque desencadeara o primeiro beijo e este o jogou aos pés do padre em poucas semanas. Paixão de outono que tem que ser satisfeita com urgência: já que se trata de material muito perecível.

Envolto em jogos bem mais interessantes, Agapito abandonou a roda de Gamão. Meses depois, os antigos companheiros o viram passando na calçada oposta, com as mãos preenchidas de pacotes da feira que acabara de fazer. Quando gritaram por ele, chamando-o, ele deu meia volta, fitou-os, com a testa coberta pelas primeiras gotas de suor que já vira na vida e, mostrando os embrulhos com alguma dificuldade, rechaçou:

--- Tá vendo aqui o que eu queria com aquele namoro besta ?



J. Flávio Vieira

3 comentários:

socorro moreira disse...

Namoro besta ...É tão bom !


Eita bichim pra escrever tudo !

Marcos Vinícius Leonel disse...

José, eu conheço vários Agapitos. Acho que essa é uma raça, uma confraria, uma tendência artística, com manifesto e tudo. Eu tinha um contra-parente, desses que freqüentam sua casa e que são amigos da família e tudo mais, que Deus o tenha. Ele era tão miserável que ele levava pra gente bombom piperr, de menta, quebrado em pedaços, que era pra render. Pode?

jflavio disse...

Acho que esta raça é bem extensa, Marcos, em todo canto temos um Agapito desses. Este também foi arrancado da vida real com todas suas qualidades e defeitos. O quebrador de Pipper, então, é uma figura impagável.