TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Intervenção de Paul Blanquart durante missa de despedida de Violeta Arraes Gervaiseau

Nestes dias os blogs do Cariri foram solidários com Violeta Arraes e demonstraram que reconhecem a própria humanidade que têm em si. Hoje, sexta feira, quando a Universidade Regional do Cariri lhe presta homenagem e quando suas cinzas serão deixadas no solo de sua origem planetária, estou postando o texto de Paul Blanquart lido no dia de sua cremação aqui no Rio.

"A você, Pierre, seu companheiro de toda uma vida, essa vida que não podíamos imaginar que você conseguisse viver sem ela, nem ela sem ele: como ela vacilou no momento do seu acidente, em 1987, temendo perdê-lo!

A vocês, os três filhos, Maria Benigna, Henri e João Paulo, os três tão queridos, e igualmente queridos, embora de modo diferente.

A nós, amigos e próximos.

Antes que o fogo leve seus despojos, cabe-nos fixar a memória desta mulher, recolher os traços com que marcou o espaço e o tempo — para que eles nos penetrem —, a fim de continuarmos o caminho.

Mulher de facetas múltiplas, mas de grande unidade de sentido. Mulher curiosa de tudo, mas sem superficialidade, curiosa de uma presença densa nas coisas, nas pessoas, no que acontecia. Para sintetizar, Violeta mulher política, mulher de cultura, mulher de fé.

1. Mulher política primeiro. Mas de que política?

A “senhora embaixadora do Brasil em Paris”, como alguns a chamavam, era capaz de frequentar e de receber gente da alta roda. Na verdade todos os que assim o desejassem. Mobilizando todos os círculos, não para todos os Brasis, mas para o seu Brasil, que era aquele que a ditadura esmagava, e particularmente o povo pobre. Atrás de seu largo sorriso, era uma ativista poderosa. Lembro-me de uma manifestação em janeiro de 1970, na grande sala superlotada da Mutualité — Sartre lá estava, Miguel Arraes, vindo de Argel, também — e que contou muito para relançar as energias num contexto difícil (morte de Marighella, caso dos jovens dominicanos). Para montar essa manifestação, e num tempo recorde, éramos apenas um punhado de indivíduos sem tropas, mas treinados por uma Violeta determinada e que Pierre assistia noite e dia.

E o Brasil que ela servia assim, que ela desejava, não era apenas um Brasil para os pobres, mas pelos pobres: ela sempre se manteve fiel ao espírito e aos objetivos dos grandes movimentos de educação popular, para os quais o futuro dos oprimidos deve ser construído por eles. E é nesse ponto que a mulher política era inseparável da mulher de cultura.

2. Mulher de cultura, de fato, mas de que cultura?

De grande sensibilidade e de um gosto muito firme, ela apreciava as grandes obras, as da elite. Mas se recusava a admitir que a arte fosse apenas um consumo de luxo para os abastados, num mundo à parte. Capaz de exercer altas funções culturais – não foi ela a senhora secretária de cultura do estado do Ceará, e depois a senhora reitora da Universidade do Cariri? –, ela soube colocar essas funções, assim como a ação política, a serviço da afirmação dos pequenos, pela valorização e pelo estímulo de sua criatividade cotidiana. Todos puderam observar sua atenção pelos objetos produzidos pelas artes populares e sua preocupação de que essas artes se tornassem novamente vivas e imaginativas. E também sua senbilidade ao ambiente de todos os dias, às roupas, à arquitetura de interiores. A razão disso é simples: se não queremos que a vida escape à grande maioria, é preciso que cada um seja seu autor. Se Violeta abordava a política pela cultura era para que a política não escapasse ao povo. O raciocínio hoje difundido diz: produzamos economicamente a riqueza e, quanto à cultura, depois veremos. Resultado: o homem livre e responsável torna-se consumidor manipulado pelo mercado. Assim como Pierre frente à Fundação Araripe, Violeta era partidária de uma outra via de desenvolvimento, que garanta a dignidade de todos pela criatividade singular de cada um.

Mas o que a impelia nessa direção? É aqui que encontramos a mulher de fé.

3. Violeta, mulher de fé.

Nesse ponto tocamos no fundo que habitava todo o resto, uma interioridade pessoal que a fazia caminhar.

Pois sua política é a política da fé: a de dom Helder, de quem ela foi como que filha, primeiro muito jovem no Rio, depois dirigente nacional da JUC, depois enviada por ele a Lyon para uma sessão de Economia e Humanismo, onde ela encontrou Pierre. Dom Helder, que ela encorajou, em junho de 1970, durante uma passagem dele por Paris, a denunciar a tortura no Brasil com muita força e também muita repercussão para que os militares não podessem impedi-lo de voltar. É a política do Magnificat, o cântico da jovem Maria: “Ele manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens, e aos ricos despediu de mãos vazias”.

É a do poema de Francisco de Assis, que instaura como programa as Bem-aventuranças lidas há pouco: “onde houver ódio, que eu leve o amor; onde houver discórdia, que eu leve a união” etc.

Sua concepção de cultura é a poética da fé, capaz de reencantar o mundo à maneira desse outro poema de Francisco de Assis: “louvado sejas, meu senhor, pelo irmão Sol, pela irmã Lua e pelas Estrelas, pelo irmão Vento, pela irmã Água, pelo irmão Fogo e por nossa mãe a Terra, e finalmente por nossa irmã a Morte.” E o piso de seu apartamento no Rio está repleto de animais muito diferentes, em poses atentas, e são obra de nordestinos, como as criaturas cantadas por são Francisco e que viviam em torno dele.

Na origem de suas atitudes, portanto, a fé, e a fé nua, a fé que não se apóia em nada e que nos perfura por dentro. A fé que tem a ver com a noite: noite do velho dom Helder, assistindo à desconstrução sistemática de sua obra por seu sucessor; noite do Francisco de Assis do final, traído por aquilo que a instituição eclesiástica faz de sua Ordem e dele mesmo; noite de Tereza de Lisieux, outra figura-referência de Violeta, que remetia a João da Cruz: a verdadeira luz é a noite. Há uma face noturna de Violeta, bastante escavada, esvaziada de si mesma, a ponto de ouvir o outro. Pudemos avaliar sua qualidade de escuta no seu trabalho de psicanalista. Mas é o despojamento de sua fé que fazia que — existem testemunhos — o fundo de si mesma se levantasse na relação com ela, e que, do interior de seu sofrimento, às vezes ela e o outro se falassem de alma a alma, até — em certos casos — as raias da loucura. É da fé que nasce a alegria e é ela que escuta o canto de cada outra pessoa. Paradoxo: a fé abre para a multidão, como em Tereza de Lisieux, pela afirmação singular de cada um. Por aí pode-se sem dúvida compreender a espantosa capacidade de Violeta de se ligar ativamente a pessoas tão diferentes.

Violeta, em português, designa a flor e um instrumento de música, uma pequena viola. Mulher flor e mulher música. Passada pelo fogo, ela se misturará à terra, ao ar, à água, à humanidade de ontem e de amanhã, contribuindo para o canto do mundo, para a diversidade de suas cores, na continuidade de sua vida. Obrigado, Violeta, e que você possa nos ajudar a acompanhá-la nessa grande obra."


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