TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 18 de julho de 2008


AS PREGAS IMPAGÁVEIS DE JOVELINO SAFADEZA

A pequena cidade de Alvoredo, encravada no vale do Cariri, amanheceu de supetão. Lá pelas cinco da manhã uma fedentina ilustre tomou conta do arruado e não deixou ninguém mais dormir. Aos poucos, cidadãos e arremedos foram levantando. Logo grupos foram se formando frente às casas. Naquele momento eram todos iguais. Em pouco tempo uma multidão de insatisfeitos debatia com alvoroço o tema imposto. As opiniões eram divergentes. Alguns achavam que aquilo fedia a ataque terrorista. Outros achavam que era perseguição política. Muitos achavam que o prefeito estava por trás. Inúmeros afirmavam que aquilo era uma injustiça. E então vieram os esporádicos falta de reza, culpa do forró, obra dos monarquistas, a podridão da república, as guengas da classe alta, a corrupção dos vereadores... até que alguém enfastiado vociferou que assim ninguém resolvia nada, era melhor criar grupos de investigação e descobrir de onde vinha o fedor. Assim foi feito e assim saíram os grupos de faro em punho, certos de um grande espetáculo da inquisição, com fogueira e tudo. Grupo sobe, grupo desce. Um trancilin da boba. Foi Miro de Armiza que alertou: “essa porra vem daqui”, parado em frente ao estabelecimento promíscuo de Conceição dos Santos, antagonicamente conhecida como Ceição dos Prazeres, ao seu dispor sempre. Os grupos se reuniram no âmago da questão e logo o padre tomou a palavra, em nome de Deus: “Isso não é só a pouca vergonha dos homens de Alvoredo não. Isso é a soma de todos pecados. É um castigo geral, pela língua de Gertrudes, pela avareza de Pedim Três Quartos, pela roubalheira de Toim da Belina, eleito sabe Deus como, é pela prepotência de Almerinda, que fala dos filhos alheios, mas tem duas filhas descabaçadas e um maconheiro, é pela....” O discurso começava a incomodar. A multidão em frente ao prostíbulo se inquietava. No meio da algazarra alguém gritou tira esse baitola daí. Mais confusão ainda, até que o delegado Epaminondas, mais conhecido pelo apelido de Tamanduá, devido ao seu rosto ser afilado pra frente, quase em funil, tomou a palavra, prometendo colocar as garras da justiça no responsável pelo ato e fazê-lo confessar sob tortura, o autor intelectual da ação criminosa. Enquanto o fedor subia de revestrés e o povo suava e as mulheres vomitavam, o juiz improvisou uma intervenção tangedora da afirmação de Tamanduá, reiterando o caráter supremo e imparcial da justiça, enquanto seu secretário distribuía o cartão do seu genro, que nunca fez porra nenhuma, a não ser se formar em direito numa faculdade particular, com ingresso facilitado. Foi quando Berlamino Beleza, temendo futuros inquéritos, propôs a invasão do recinto, colocando a sua vasta experiência geográfica do ambiente a serviço da comunidade. Houve indecisão. Mas resolveram formar uma comitiva de notáveis, guiada pelo cafajeste maior da soberba Alvoredo. Entraram na sala e todo mundo dormindo. O fedor aumentando. A multidão tensa. Entraram numa segunda sala, que servia de bar e equipamento cultural para as preliminares e todo mundo dormindo. O fedor aumentando. A multidão tensa. E foram abrindo os quartos um a um, dispostos em paralelo em um corredor curto, mas promissor. Foram abrindo e se repugnando, e se extasiando, e se excitando, e se abismando com o que queriam e não queriam ver, e todo mundo dormindo. O fedor aumentado. A multidão preste a invadir. Depois do último quarto, o fim do corredor. E lá, obscurecido pelas sombras do prazer pago, repousava no cimento frio, emoldurado pela inércia dos mistérios profanos, um pacote retangular, muito bem amarrado. A fonte de toda a escatologia cósmica exibia a sua singularidade diante de tão nobre e perplexa comitiva. Ficaram mudos, exalando a criação e consumação dos tempos. Diante de tamanho perigo - afinal poderia estar começando ali a maior guerra bacteriológica de todos os tempos, o fim da humanidade -, alguém jogou a responsabilidade para a ciência. Chamaram o único doutor da cidade, com mestrado na grande Juazeiro do Norte e doutorado na misteriosa Crato, ambas terras do Padre Cícero. Vasculharam a cidade e nada. O desespero já tomava conta. A histeria arrumava a sua roupa de gala, quando alguém disse em tom de desabafo: “esse filho da puta tá é aí!” E estava mesmo. Depois de uma rápida investida o baluarte foi encontrado escornado em uma cama, ao lado de sua Penélope, literalmente com a boca cheia de pelos, sob a aprovação de alguns e a maldição de outros. Já de pé e diante do fenômeno a ser observado, com o fedor politicamente correto acrescido da sua ressaca, vaticinou,: “Senhores isso não é só assim, a ciência não pode se dobrar ao imediatismo dos desejos. É preciso tempo. Eu tenho que ter um procedimento ético. Observar, eis a chave. Tenho que reduzir o objeto à sua mínima parte, desenvolver teses, considerar experiências, usar a precisão de meus aparelhos e me reportar a teorias já existentes de René Descartes, Russeau e Newton, é necessária apologética.” Nisso o fedor estava se transformando em extermínio de massa. Foi quando alguém perguntou: “E na bunada num vai dinha não?”. Houve empurra-empurra, tapas, desespero e zoada muita. A muvuca foi desfeita com os gritos de Jovelino Safadeza, que acabara de abrir as portas da suíte presidencial, logo ali, vizinho ao centro de estudos e pesquisas, perguntando o motivo dessa des-foda. Apontaram para o pacote absconso, enigmático como uma pirâmide. Todos estavam agoniados com a podridão, menos Jovelino Safadeza, que demonstrava uma familiaridade desconcertante. Quer dizer que a putaria todinha é por causa disso? - perguntou apontando o pacote. Home isso é buchada dormida, do café de Rita Risonha. Bosta customizada. Sabia que o estrago seria feio e eu num ia cagar na suíte pra estragar a reconciliação, daí fiz esse pacotinho de merda. Agora torô dento. É só dá discarga, dando o assunto por encerrado. Ele foi prontamente linchado sob o descontrole total da população e o choro secreto de Augustinha, filha de Rosalvo Ágil, prefeito de Alvoredo. O prédio foi confiscado, passou por uma reforma e virou memorial. No marco zero foi erigido um pequeno obelisco com placa de prata, com o nome de todos os notáveis. Na lápide de Jovelino ainda é possível ler: aqui jaz Jovelino dos Prazeres e o seu incrível cu de aço.

2 comentários:

Dihelson Mendonça disse...

Ahahahahahahah.
Impagável, meu caro Marcos!
Não sabia desse seu talento de cronista também. Ao seu modo ( mas um tanto na linha do nosso mestre Zé Flávio ), você nos cria todo um ambiente virtual, em que parece que estamos a VER as coisas acontecerem.

Cada um tem sua opinião, meu eu adorei esse conto!
O Zé Flávio tem umas 10.000 crônicas e contos escritos, mas eu mal posso esperar ler o seu próximo, tamanha a admiração pelos detalhes.

Abraços,

Dihelson Mendonça

Marcos Vinícius Leonel disse...

valeu Dihelson, um abraço, esse conto faz parte de um livro ainda inédito. Publicarei outros.