TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A crônica do Bruxo do Sítio Rosto



As favas brotam airosas
ou
De como ter Chronical Blues no terreiro de casa.

A
qui no Sítio Rosto, a vida amanheceu a mil. A noite de sábado fôra por demais agitada. Cachorros demais, latidos demais. Sem falar que, um sono trêfego (vamos parar de comer à noite), veio compulsoriamente à tona, às 3 horas da manhã. Acordei-me no meio da inesperada passagem da “rasga-mortalha,” que, por três vezes, cruzou o céu de breu, que pairava sobre o Sítio Rosto. Ela voejava rasantemente seu canto fúnebre, rumo às águas poucas e turvas do rio da Cascata. Não tive dúvida: “me apeguei com meu santinho” e perdi o sono de vez.
Às nove da manhã, quando o dia viceja neste meu rincão, não por contraste, é comum fazer um silêncio obsequioso. As mulheres, mães de todos os meninos, galinhas e cachorros, ouvem a sagrada missa pelo rádio e fazem a rotineira bóia domingueira; ou fazem a sagrada bóia domingueira e ouvem a rotineira missa pelo rádio? Decifrar este mistério, quem há-de?
Igualmente importante foi o meu encontro com um grande (apesar do seu menos de um metro de altura), e carinhoso amigo. Tindô (foto acima) falou das coisas que faz. E, como sói acontecer em narrativas profissionais, disse-o ao ainda triste e sonolento, com um misto de entusiasmo e decepção. Otimista, só retive o que ele me confabulou de bom de seu responsável mister. Olha só, aí fui deixando a sonolência de lado e abri bem os olhos, e os ouvidos! E, como era domingo, dia de prazer, fui lascivamente degustando as suas ocasionais observações sobre os tipos, as caras e bocas, os suspiros, os choros, as gafes, as pompas e as circunstâncias que decorrem furtivamente das pessoas no ato do casamento civil. Embevecido pela sua narrativa, fui me dando conta, olhando para a sua pequenez, de como ele se percebe altamente importante, ao realizar o ideal da humanidade de homens e mulheres em torno do casamento. Arrepiei-me, quando ele falou entusiasticamente do orgulho em ser um instrumento de felicidade, por acalentar sonhos de realização social de tantas e tantas vidas. Tindô, atenção namorados, noivos e pretendentes, é juiz de paz, o outrora juiz ordinário ou juiz de dentro. E como esta instância do Poder Judiciário ainda não foi, em muitos lugares, devidamente regulamentada por lei, como manda a Constituição de 1888, finda o seu titular conhecido como “Juiz de Casamento”. É o caso do meu amigo Tindô.
Neste momento da conversa, voltei-me para a História do Crato do século XVIII, mais precisamente a partir de 1755. Nesse ano, em 07 de junho, entrava em vigor a lei que, entre outras medidas, em seus noventa e cinco parágrafos, abolia a tutela das populações indígenas às missões religiosas e determinava a integração do índio à sociedade civil colonial, ao mesmo tempo em que transformava os antigos aldeamentos e fazendas indígenas em vilas. Isto e tudo o que derivou dela – chamada de Diretório dos Índios – estavam consubstanciados na reforma do Estado Português para todas as suas colônias, tendo a frente o poderoso Sebastião José de Carvalho e Melo – o Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal –, Ministro e Secretário de Estado e Negócios do Reino, no reinado do caridoso D. José I.
Vem daí que a Missão do Miranda, em 1764, já destituída da missão de catequese recebe o status de Vila Real. Igualmente vem daí que, em virtude de sua grande maioria populacional ser formada por remanescentes indígenas, (cerca de 250 pessoas adultas entre índios e brancos, e mais de oitenta crianças), popularizou-se também como Vila de Índios.
Implantada a estrutura político-admnistrativa da novel comuna portuguesa no coração do que hoje é o Cariri, imagina quem foi o nosso primeiro juiz ordinário?! O Dr. José Amorim, um ilustre e combativo índio da grande Nação Cariri.
Aí eu convido você, leitor, a imaginar, num exercício de comparação, a labuta do pequeno-grande homem Tindô. Saca quantos laços matrimoniais entre índios e brancos, como mandava o Diretório, não foram anunciados pelo nosso primeiro Magistrado José Amorim, num linguajar português/tapuia, já que pela mesma Lei, tornou-se obrigatório o ensino da língua portuguesa, assim como obrigatória foi a proscrição da língua Cariri. E saca quantas esperanças não foram adormecidas na mente daquele filho, outrora senhor das terras cariris, e agora transformado em cidadão português, ao instrumentalizar a união entre duas culturas de valores tão assimétricos.
O mesmo sonho, talvez sempre sonhado por nubentes apressados na eternidade da vida a dois, sob o Dr. Francisco de Assis Carlos da Silva, o anão Tindô, quem sabe, teria sonhado, sob o pretor José Amorim, (esse nosso produto enviesado do iluminismo europeu à la Rousseau), muitos e muitos casais na crença de uma vida que poderia ter sido e que não foi... Mas aí é uma outra estória.
Meu dileto amigo Tindô dirige o Cartório de Registro de Casamentos do Lameiro, sito entre dois botecos, no Largo D. Rosa, em frente à Capela do glorioso São José, nas imediações do Sítio Rosto.
No ano vindouro, o Cartório e a magistratura no Lameiro completarão 70 anos de existência. E haja casamento!
(O Bruxo do Sítio Rosto)

3 comentários:

Armando Rafael disse...

Caro Bruxo do Sítio Rosto,
Fiquei feliz por:
- Postar sua nova crônica;
- Conhecer a história de TINDÔ que vi passar muitas vezes pelas ruas de Crato - lépido e fagueiro - enquanto eu ficava a imaginar quem seria...
Pelo visto o paradisíaco Lameiro tem muitas histórias e muitas figuras interessantes. Quem sabe um dia não dará um livro, sob as bênçãos do glorioso São José Operário cuja capela é exemplarmente cuidada por Silvana Vilar. Mas aí é outra história...

Domingos Barroso disse...

Tindô,
onde estiveres,
sob qual magia
de fazedor de quimeras,
um forte abraço.
Talvez não saibas,
mas também me perdia em devaneios
ao te ver saltitante e místico.
Agora somos todos crianças.
O meu rosto mudou,
tua alma continua sorridente.

Pachelly Jamacaru disse...

Legal esta homenagem a Tindô, Grande figura!