Se o frio fosse um sentimento, a religião nos salvaria. Mas o frio é uma coisa física tão poderosa que no limite nem mais a partícula elementar da natureza se move. Congela e congelar não é apenas endurecer, é muito mais, é deixar de ter movimento. O frio é, filosoficamente, a antítese do universo, de Deus e tudo o que existe ou deixou de existir.
Isso é o que pensa José Vilmar de Oliveira em seu apartamento de pé direito descomunal, tantos quartos vazios da prole que teve, menos do que quartos, mas que já foi embora. Fora em direção das terras mais tropicais. O apartamento de Vilmar é um verdadeiro zigurate levantado no cimo da serra na cidade de Barra Mansa. Basta a moça do tempo no Jornal Nacional falar que os argentinos despacham uma nova frente fria na direção do sudeste e a cidade vira picolé. Dizem que os cratenses se acostumaram com o frio das madrugadas da chapada, mas aquilo foi apenas uma amostra fugaz do que José Vilmar passa sob a montanha de lençóis, edredons, mantas, cobertores de lã, cachecóis e etc e etc.
José Vilmar enrodilhando feito caracol sai com as pernas brancas e finas igual um busca-pé em noite de São João na direção da salvação de sua cama de agasalhos. Meias grossas, pijama enfiado nas meias, camisa de mangas compridas passadas na calça do pijama e aí começa um ritual de dez minutos de duração. Um lençol em tracejado de múmia, um cobertor de lã por baixo, um edredom por cima, outra camada de cobertor, um cachecol no pescoço, uma boina cobrindo cabeça com orelhas incluídas, um lençol sobre os olhos, relaxa finalmente e pode até pegar no sono.
Pode nada. A modernidade chegou. O telefone sem fio, num móvel próximo da cama mas não o suficiente que o braço alcance, começa a piar dando sinal de bateria fraca. O primeiro pio faz parte do conhecimento, o segundo é um adjetivo, o terceiro já quer um desfecho e o quarto o jeito é desfazer o conforto conquistado após trabalhoso dez minutos. Entre a cama e o telefone, no meio um ambiente congelado, pedaços de gelos de palavrões caem nos ouvidos da mulher de Vilmar como pedradas numa Madalena. Com a ira que Deus possui e deu de herança à humanidade, Vilmar acerta a porra do telefone no gancho. Pronto agora este......censurado....vai carregar e parar de piar.
Retorna à mesma penosa tarefa de agasalhar-se. Agora mais eficiente, afinal era a segunda vez da noite e de alguma forma o treino lhe dava velocidade, mas não deixou de refazer todo o rito. O rito finalmente se completa e o homem, novamente conquistador da sua paz, sente-se na ante-sala da noite bem dormida. A mente começa a flutuar como a engatilhar os sonhos daquela noite. E já vai escorregando para alguma região onírica, mas a primeira imagem arquetípica é um pio de telefone. Em seguida o pio já não era mais sonho e nem sono. Era a realidade queimando a coluna vertebral de tanta insatisfação. Vai não vai. Ir e não ir. Um século de decisão e um rosário de palavras má afamadas de volta ao telefone.
Agora será radical. Aquela imensa câmara fria, denominada quarto de dormir, será o cenário em que Vilmar realizará complicada operação de desconectar o telefone sem fio. Primeiro o fio de alimentação de eletricidade, enrolado no pé do móvel, uma quina de móvel riscando as costelas, a cabeça testada sua dureza numa cabeçada na tábua da esquina, arrasta móvel, solta o fio, dobra o fio e o frio filosoficamente parando José Vilmar. Após isso vem o fio propriamente do som do telefone. Achar sua caixa, normalmente uma gambiarra feita às pressas para trazer a extensão até o quarto. Após dedos enfiados nas teias de aranha do rodapé, as furadas nalguns pregos remanescentes de antigas fiações, finalmente o buraco e o fio do telefone solto. Arrumar tudo e sair pelo corredor que é mais um tubo de vento da Sibéria em direção à sala. Mas não se deixará vencido por um pio de telefone, sobe as escadas do mezanino e deixa aquele inferno bem longe de sua cama.
De volta à cama, pela terceira vez o ritual de agasalhamento. Se a chateação de refazer a mesma coisa é a tônica, pelo menos está satisfeito. O problema resolveu-se. Não tem mesmo, no mais profundo silêncio da noite, daquele pio, deixado uma porta após a outra e no alto do mezanino aos seus sonhos retornarem. Finalmente como a vida lhe mereceu a paz. A mulher ao seu lado. Sua vida plena, tudo que a sociedade lhe prometera: família, casa e comida. Vilmar naquele contraste, talvez pela primeira vez, se dera conta do quanto era capaz de, pela persistência e pela ação, modificar aquilo que vinha contra si. Na verdade até, para embalar seu sono, pensava num P. Point, com aquelas músicas melosas, que poderia enviar para os amigos dando conta e estimulando-os com a mensagem da persistência. Ele já via seu P. Point todo colorido, rosas, imagens de Jesus e finalmente a indefectível mensagem final: E QUE DEUS LHE DÊ UMA BOA SEMANA.
PIO.
PUTA QUE PARIU QUE PORRA É ESSA. – Vilmar tão excitado até ficou em pé na cama.
E a mulher de Vilmar: É O CELULAR AÍ NA MESINHA DE CABECEIRA.
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