(de Patativa, Nietzsche e Deus, não necessariamente nesta ordem)
por Larissa Santos Pereira
Pensar no que simboliza a música me faz lembrar de Nietzsche, que desafiadoramente, registra: “Eu não acreditaria em um Deus que não soubesse dançar”. Também eu não acreditaria em um Deus estático, enclausurado em sua redoma e apenas preocupado em anotar, diariamente, no grande Livro da Vida, os meus pecados diários. Sou católica, de formação judaico-cristã e, portanto, cresci em um ambiente no qual o Deus era realmente punitivo, mas, em contraponto, fortemente amoroso.
Na Congregação das Irmãs da Sagrada Família, onde estudei e também na minha casa, a palavra Deus era sinônimo da palavra amor. Na minha casa, em especial, este bem-querer se dava tanto nas relações afetivas quanto na marcante presença da música. Ouvir música sempre foi significativo para a nossa família, sendo que o repertório variava dos ditos clássicos da MPB da época (saudosos anos 80), passando pelas “brasas” da jovem guarda e chegando até algumas expressões do forró e rock nacional.
Dentre os cantores, minha mãe tinha predileção por Fagner, cearense que me inquietava pela firmeza com que ca(o)ntava não as músicas “de amor”, mas as histórias do cotidiano nordestino, como a seca e a conseqüente exploração do sertanejo. Nesse contexto, uma composição sempre me chamou a atenção: Vaca Estrela e Boi Fubá, da autoria de Patativa do Assaré, que tece uma narrativa entremeada de sofrimento e lirismo para caracterizar a vida do vaqueiro que, aos poucos, é forçado, pela lógica da seca perversa, a abrir mão de seu gado.
Vaca Estrela e Boi Fubá é uma canção triste, que desperta nos/as ouvintes, uma sensação de estranheza no mundo, um nó na garganta que anestesia a vontade de agir, quase imobilizando o poder de reação. É também uma canção dura. Lembro de não entender porque a vaca e o boi em questão apresentavam nomes tão suaves, contrastando com o universo ali descrito: astúcias do sábio compositor.
Hoje, passadas duas décadas de quando, certamente, ouvi pela primeira vez esta música, ela me veio à mente de forma arrebatadora, trazendo, ao seu lado, Nietzsche e Deus. Ontem à noite fui a uma Estação de Transbordo do Transporte Coletivo de Salvador. A capital da Bahia ostenta cerca de 3.350.523 habitantes, grande parte deles amontoados em sub-bairros, sub-empregos, sub-moradias, sub-opções de lazer, sub-vida, enfim. A Estação Pirajá, onde fui, serve como eixo de condução para muitos bairros periféricos de Salvador, com nomes expressivos, como Palestina ou Boca da Mata.
Ao chegar à Estação eu, incauta escriba, fui informada de que havia uma fila de espera, não só para aguardar (uma média de 20, 30 minutos), como para, finalmente, ingressar no Amontoamento Noturno, vulgo Transporte Coletivo. Foi aqui, ao me reunir aos demais usuários daquele serviço, que recordei da vaca, de Nietzsche e de Deus, necessariamente nessa ordem. Explico-me: é estupenda a sensação de desumanização que aquela experiência causa no indivíduo. A ida, lenta e paciente para o ônibus, me fez imaginar-me como uma vaca, que, silenciosamente, resignava-se e caminhava para o Abatedouro. Não, não é exagero afirmar. Todos/as nós ali, naquele momento, éramos bois e vacas, impregnados da mais pura e ofensiva bestialidade.
A minha caracterização animalizada naquele momento me espantava e, ao mesmo tempo, me indignava. A insistência profunda de Nietzsche ecoava em minhas reflexões: então, esta é a condição humana? É para isso que somos? É isso o que somos? Uma grande massa desprezível a que se titula povo, que se aglutina de manhã e à noite, para ir e voltar dos serviços e/ou estudos e assim, nestas experiências, se animalizar de forma cada vez mais acentuada?
Já nos últimos passos daquela infeliz fila me lembrei de Deus. A lembrança foi fugaz – não há tempo para digressões quando se precisa disputar um lugar em pé em um ônibus com os motores já ligados para partir –, mas intensa o suficiente para, em mim, formular o desejo da pergunta ainda inquietante: “Deus, que música você dança?”.
Larissa Santos Pereira
Manhã de domingo, 13 de julho de 2008.
Na Congregação das Irmãs da Sagrada Família, onde estudei e também na minha casa, a palavra Deus era sinônimo da palavra amor. Na minha casa, em especial, este bem-querer se dava tanto nas relações afetivas quanto na marcante presença da música. Ouvir música sempre foi significativo para a nossa família, sendo que o repertório variava dos ditos clássicos da MPB da época (saudosos anos 80), passando pelas “brasas” da jovem guarda e chegando até algumas expressões do forró e rock nacional.
Dentre os cantores, minha mãe tinha predileção por Fagner, cearense que me inquietava pela firmeza com que ca(o)ntava não as músicas “de amor”, mas as histórias do cotidiano nordestino, como a seca e a conseqüente exploração do sertanejo. Nesse contexto, uma composição sempre me chamou a atenção: Vaca Estrela e Boi Fubá, da autoria de Patativa do Assaré, que tece uma narrativa entremeada de sofrimento e lirismo para caracterizar a vida do vaqueiro que, aos poucos, é forçado, pela lógica da seca perversa, a abrir mão de seu gado.
Vaca Estrela e Boi Fubá é uma canção triste, que desperta nos/as ouvintes, uma sensação de estranheza no mundo, um nó na garganta que anestesia a vontade de agir, quase imobilizando o poder de reação. É também uma canção dura. Lembro de não entender porque a vaca e o boi em questão apresentavam nomes tão suaves, contrastando com o universo ali descrito: astúcias do sábio compositor.
Hoje, passadas duas décadas de quando, certamente, ouvi pela primeira vez esta música, ela me veio à mente de forma arrebatadora, trazendo, ao seu lado, Nietzsche e Deus. Ontem à noite fui a uma Estação de Transbordo do Transporte Coletivo de Salvador. A capital da Bahia ostenta cerca de 3.350.523 habitantes, grande parte deles amontoados em sub-bairros, sub-empregos, sub-moradias, sub-opções de lazer, sub-vida, enfim. A Estação Pirajá, onde fui, serve como eixo de condução para muitos bairros periféricos de Salvador, com nomes expressivos, como Palestina ou Boca da Mata.
Ao chegar à Estação eu, incauta escriba, fui informada de que havia uma fila de espera, não só para aguardar (uma média de 20, 30 minutos), como para, finalmente, ingressar no Amontoamento Noturno, vulgo Transporte Coletivo. Foi aqui, ao me reunir aos demais usuários daquele serviço, que recordei da vaca, de Nietzsche e de Deus, necessariamente nessa ordem. Explico-me: é estupenda a sensação de desumanização que aquela experiência causa no indivíduo. A ida, lenta e paciente para o ônibus, me fez imaginar-me como uma vaca, que, silenciosamente, resignava-se e caminhava para o Abatedouro. Não, não é exagero afirmar. Todos/as nós ali, naquele momento, éramos bois e vacas, impregnados da mais pura e ofensiva bestialidade.
A minha caracterização animalizada naquele momento me espantava e, ao mesmo tempo, me indignava. A insistência profunda de Nietzsche ecoava em minhas reflexões: então, esta é a condição humana? É para isso que somos? É isso o que somos? Uma grande massa desprezível a que se titula povo, que se aglutina de manhã e à noite, para ir e voltar dos serviços e/ou estudos e assim, nestas experiências, se animalizar de forma cada vez mais acentuada?
Já nos últimos passos daquela infeliz fila me lembrei de Deus. A lembrança foi fugaz – não há tempo para digressões quando se precisa disputar um lugar em pé em um ônibus com os motores já ligados para partir –, mas intensa o suficiente para, em mim, formular o desejo da pergunta ainda inquietante: “Deus, que música você dança?”.
Larissa Santos Pereira
Manhã de domingo, 13 de julho de 2008.
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