TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 15 de novembro de 2008

Festança sobre o Vulcão




Óleo de Aurélio Figueiredo
O imperador (à esq.) recebe os 4 500 convidados: O Rio de Janeiro parou para ver o desfile de elegância


Com a República já nos calcanhares, o Império se divertiu à larga no baile da Ilha Fiscal


Jamais o Rio de Janeiro havia servido de cenário para tanto fausto e cintilância. No último dia 9, sábado, os salões do Palácio da Ilha Fiscal, na entrada da Baía de Guanabara, inaugurado em abril passado para abrigar o serviço marítimo da alfândega, foram palco do baile mais extraordinário entre todos os promovidos pelo Império. Foi também o último, o apagar das luzes da monarquia no Brasil, realizado apenas seis dias antes que as forças republicanas instaurassem no país a nova ordem. O baile foi oferecido pelo então presidente do Conselho de Ministros, Visconde de Ouro Preto, aos oficiais do cruzador chileno Almirante Cochrane, que no dia 11 de outubro chegara ao porto, com 300 tripulantes a bordo, em escala de boa vizinhança. E nada foi poupado para que os convidados, que se calcula terem chegado a 4 500, entre eles, é claro, a família imperial, passassem uma noite de sonho e fantasia, revezando-se entre um banquete fenomenal e as contradanças, entre os brindes aos oficiais chilenos e a palestra fina. A festa custou aos cofres públicos cerca de 250 contos de réis, quase 10% do orçamento previsto da Província do Rio de Janeiro para o ano que vem.
Dançou-se muito no baile da Ilha Fiscal, mas o que os convidados não imaginavam, nem o imperador D. Pedro II, é que se dançava sobre um vulcão. À mesma hora em que se acendiam as luzes do palacete para receber os milhares de convidados engalanados, os republicanos reuniam-se no Clube Militar, presididos pelo tenente-coronel Benjamin Constant, para maquinar a queda do Império. "Mais do que nunca, preciso sejam-me dados plenos poderes para tirar a classe militar de um estado de coisas incompatível com sua honra e sua dignidade", discursou Constant na ocasião, tendo como alvo justamente o Visconde de Ouro Preto. Longe dali, ao lado da família imperial, o visconde desmanchava-se em sorrisos ao comandar seu suntuoso festim.
Passados dez dias de sua realização, o baile da Ilha Fiscal ainda é comentado na cidade, seja nas rodas chiques da Rua do Ouvidor, seja nos bairros. Pela forma como mobilizou não apenas os convidados mas também toda a população do Rio de Janeiro e por ter marcado o canto do cisne do Império, pode-se prever que ele ficará inscrito na História da cidade e do país. Já no início da tarde daquele sábado, o Rio de Janeiro passou a viver um clima diferente. Acabou mais cedo do que de costume o movimento no centro, à exceção do que se verificava nas lojas de roupas finas, como a Casa Wellimcamp, a Casa PaIais Royal e a Mme. Roche. Nelas, fervilhavam as senhoras e senhoritas em busca de suas requintadas toaletes de seda, rendas de Bruxelas, chamalote ou veludo.
Nos alfaiates, o movimento não era menor. Os cavalheiros acorriam em busca de suas casacas feitas especialmente para a ocasião. Os mais ousados faziam os últimos ajustes em seus vestons - essa extravagante indumentária recém-surgida no mundo da moda, composta de vestes compridas e pretas com gola, inteiras de seda. Os festeiros se apressavam também para conseguir dar os últimos retoques no trato pessoal. As filas nos barbeiros eram enormes, e muitos cavalheiros que desejavam apenas fazer a barba tinham que esperar pacientemente até que se fizessem nas melenas dos jovens, a ferro quente, as pastinhas, hoje tão populares entre eles. "Os ministros escovavam as casacas para o baile dos arrependido, e a Guarda Nacional narcisava ao espelho a bizarria marcial dos seus figurinos para a batalha das contradanças", assim definiu Rui Barbosa os preparativos. Os cabeleireiros da cidade, estes então, trabalharam a não mais poder. Muitas senhoras, para conseguir vaga num deles, fizeram seus penteados de baile às 9 horas da manhã.
O baile estava marcado para as 8h30, mas desde cedo uma multidão se acotovelava em volta do Cais Pharoux, que dá acesso à ilha, e nas ruas próximas para ver chegarem os convidados. A impressão que se tinha era que boa parte dos 500 000 habitantes com que hoje conta o Rio de Janeiro estava lá. A suntuosidade da festa começava ainda na ponte flutuante montada junto ao cais para o embarque, ornamentada com seis grandes arcos e dois candelabros de gás. Junto a ela, tocava a primeira das seis bandas e orquestras contratadas para animar a festa.
Da ponte, os convivas eram levados até a ilha pela barca Primeira, coberta de tapetes luxuosos e ornamentada com as bandeiras brasileira e chilena. Ainda no cais, o cenário que se erguia das águas da baía era deslumbrante. O Palácio da Ilha Fiscal projetava-se em meio a uma iluminação feérica, feita com 700 lâmpadas elétricas. No alto da torre, um holofote produzia um foco de 60 000 velas, mais da metade da força projetada pela iluminação da Torre Eiffel.
Ao chegar à ilha, os convidados desembarcavam em meio a um bosque. Nas paredes do torreão, um quadro simbolizando a recepção ao navio Almirante Cochrane mostrava ninfas e golfinhos saindo da baía para oferecer ramos de flores aos marinheiros chilenos. Toda a ilha foi ornamentada com bandeiras brasileiras e chilenas, além de 10 000 lanternas venezianas. Seis salões abrigavam as danças. No primeiro deles, as paredes se escondiam sob cachos de flores naturais e palmas. Nos dois maiores, entre tapetes vermelhos, âncoras douradas e prateadas, foram colocados retratos recém-pintados do almirante Cochrane e do almirante Greenfell. Um republicano infiltrado no baile, que dias depois publicou suas impressões na Revista Ilustrada, comenta que a certa altura os salões tornaram-se pequenos para o número de convidados. "Para conseguir o espaço necessário às danças, o senhor Hasselmann, guarda-mor da alfândega, teve de suar, não só o topete, mas também o colarinho, de tal modo que este perdeu toda a compostura e tomou o aspecto de uma simples tripa enrolada no pescoço".
A ceia foi um capítulo à parte na festa. Foram armadas mesas em forma de ferradura, para 250 talheres cada uma. Nas cabeceiras das mesas, dois enormes pavões empalhados estendiam as caudas multicoloridas. Seguiam-se pratos de peixe e de caça colocados alternadamente e, entre eles, havia enormes castelos de açúcar, em cujos torreões foram colocados bombons. À frente de cada prato havia nove copos de feitios diferentes, três brancos e seis coloridos. Por essas mesas, passou um desfile monumental de iguarias que daria para alimentar um exército. Republicano, naturalmente.
A família imperial chegou ao cais pouco antes das 10 horas. D. Pedro II, fardado de almirante, a imperatriz Teresa Cristina e o príncipe D. Pedro Augusto embarcaram primeiro. Quinze minutos depois foi a vez da princesa Isabel e do conde D’Eu. Uma vez no palácio, foram conduzidos a um salão em separado, onde já se achavam reunidos membros do corpo diplomático estrangeiro oficiais e alguns eleitos da sociedade carioca. O guarda-roupa da imperatriz não chegou a causar impressão especial entre os convidados - um vestido de renda de chantilly preta, guarnecido de vidrilhos. A toalete da princesa Isabel, no entanto, causou exclamações de admiração pelo luxo e pela beleza. Ela portava uma roupa de moiré preta listada, tendo na frente um corpinho alto bordado a ouro. Nos cabelos, carregava um diadema de brilhantes.
O grande baile do visconde de Ouro Preto estava marcado inicialmente para o dia 18 de outubro. No dia 14, porém, chegou ao Rio a notícia de que D. Luiz I, rei de Portugal, estava à morte, o que efetivamente ocorreu cinco dias depois. Mesmo envolta em luto, a corte decidiu manter a festa e adiá-Ia para este mês. Para o visconde de Ouro Preto - embora ele tivesse confiança na firmeza do poder monárquico brasileiro - o baile serviria para rebater a disseminação das idéias republicanas com um acontecimento inesquecível, uma marca da solidez do Império.
Tudo foi montado para atingir esse objetivo, e o Rio de Janeiro parou para participar da festa ou apenas assistí-Ia. O ministro chileno, Manoel Villamil Blanco, e o comandante Banem, do Almirante Cochrane, levantaram vivas e moções de solidariedade ao governo brasileiro e ao imperador. Pelos salões desfilou a fina flor da aristocracia, da oficialidade e da sociedade cariocas. Para se ter uma idéia da animação do evento, basta ver a lista, recentemente divulgada, dos despojos encontrados nos salões na manhã do domingo. A lista inclui, por exemplo, oito raminhos de corpete, três coletes de senhora, dezessete ligas, dezesseis chapéus, nove dragonas, treze lenços de seda, nove de linho e quinze de cambraia. Sabe-se lá o que essas moças estavam fazendo quando perderam as ligas. Coisa muita séria não era.
Mal sabiam o visconde de Ouro Preto, o imperador e os convidados ilustres que o baile, em vez de pavimentar a suposta solidez do Império, marcaria o seu último suspiro. É bem verdade que, na corrida aos cofres públicos para organizar festas suntuosas para os oficiais chilenos, Ouro Preto e as hostes monárquicas não estiveram sozinhos. Sabe-se de pelo menos um caso de corporação do Exército - a da Fortaleza de São João - que, não desejando ficar atrás da Marinha nas homenagens aos oficiais do Almirante Cochrane, pediu e obteve verbas do governo imperial para organizar seu ágape. "O tenente-coronel Leite de Castro me escreveu pedindo 1 conto de réis e eu o atendi prontamente" , diz o visconde.
É possível que o próprio imperador, em seu exílio, esteja à essa hora se arrependendo de ter atravessado a Baía de Guanabara rumo à Ilha Fiscal naquela noite faustosa e fatídica. Desde que, na juventude, granjeou fama como um autêntico pé-de-valsa, e do tipo galanteador, D. Pedro nunca mais demonstrou prazer em participar de grandes bailes oficiais e sequer tomou a iniciativa de promovê-los. Numa monarquia, por tradição, é o monarca e sua família que dão o tom da vida social da corte. Se dependesse dele, o tom dos salões cariocas teria sido pálido.
Coube aos grandes anfitriões da cidade, como o barão de Cotegipe e a Mme. Haritoff, movimentarem a sociedade durante o Império, com suas festas inesquecíveis. A princesa Isabel e o conde D'Eu reagiram a essa frieza social de D. Pedro, organizando reuniões animadas no Paço de Petrópolis e no Paço Isabel. Nada disso, porém, encontrava eco no Paço de São Cristóvão. Com o baile da Ilha Fiscal, organizou-se a mais suntuosa das festas para marcar a derrocada de um imperador que detestava festas suntuosas. Certamente, ele poderia ter partido para o exílio sem carregar na bagagem as marcas dessa idéia luminosa do visconde de Ouro Preto.

2 comentários:

Armando Rafael disse...

Caro Zé Flávio,
Parabéns pela matéria postada. Apesar de você ter se baseado só num lado (o dos vencedores, afinal o Poder é paradisíaco), mesmo com certa parcialidade, é bem interessante que os leitores conheçam fatos da história brasileira.Alguém procurará o outro lado da questão e quem sai ganhando é a verdade.
A primeira batalha que os vencedores que têm que vencer, e a mais importante, depois de “conquistar o poder” é a de “reescrever” a história, apresentando o passado como uma era de erros e pecados e a si mesmos como os redentores. Os militares golpistas na primeira versão (a da “proclamação” da república) não fogem a essa regra. Existe muito de folclore, mas também alguma verdade, sobre o baile promovido pela Monarquia brasileira, na Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro.
Em 28 de setembro de 1992, o jornal paulista O Estado de São Paulo publicou a matéria relatando o preparo de um livro sobre esse evento que marcou o fim do Império no Brasil destruído que foi pelo golpe militar em 15 de novembro de 1889. A ver:
RIO - Os pesquisadores do Arquivo Nacional, órgão do Ministério da Justiça, estão à procura de patrocínio no valor de US$ 20 mil (cerca de Cr$ 150 milhões) para concluir um livro sobre o baile da Ilha Fiscal, realizado no dia 9 de novembro de 1889 pelo imperador d. Pedro II e que marcou a transição do Império para a República. Eles acreditam que as investigações sobre a participação do presidente Collor nas atividades de Paulo César Farias e a votação de plebiscito sobre regime de governo, em abril do próximo ano, estão despertando curiosidade sobre os hábitos da corte de d. Pedro II.
Há muito exagero sobre a suntuosidade desse baile. Os convidados não chegaram a 1.500 pessoas. A maioria, no entanto, preferiu ficar do lado de fora, já que o palácio era pequeno para tanta gente. Ficou menor ainda quando descobriram que só havia um banheiro para atender as necessidades de duas mil pessoas. Para socorrer as mulheres, apertadas com a cerveja que era servida à farta, a criadagem teve que retornar ao continente para pegar... baldes. Sim, as damas iam para o cantinho, colocavam o balde embaixo do vestido e se aliviavam... A polícia deteve os fanfarrões. A imprensa gozou: "A polícia não encontrou os perus no barco, mas descobriu 604 peruas no baile".
Monarquista, a Marinha de Guerra brasileira, a terceira do mundo na época, daria a cobertura. E ainda poderia contar com a ajuda da Marinha chilena, que enviara o encouraçado Almirante Cochrane para exercícios na Baía de Guanabara.Para o pesquisador do Arquivo Nacional, Sebastião Uchoa, que fez o levantamento dos artigos de jornais de época para o projeto do livro, a proclamação da República, no entanto, não significou o fim das festividades em torno da tripulação do couraçado Almirante Cochrane. Os republicanos aproveitaram para brindar com os chilenos o fim do Império, chegando até a afirmar que o fato de o Chile ser uma República foi um estímulo à sua proclamação.
.......
Em tempo: Estavam presentes apenas cerca de 600 mulheres. Por aí se vê como os “historiadores” republicanos inflaram o número de convidados. Penitencia-se, hoje, a imprensa que também ajudou a mistificar o golpe. Teríamos motivos de sobra – nós que não nos deixamos levar pela demagogia reinante – e temos motivos.
Interessante, só hoje, domingo me dei conta que ontem foi feriado nacional por conta do golpe de 15 de novembro. Estava viajando, mas houve por aqui alguma comemoração por parte do povo?

Armando Rafael disse...

Na pressa de comentar o interessante artigo engoli, no final, o meu pensamento. Deveria ter esceito assim:

"Teríamos motivos de sobra – nós que não nos deixamos levar pela demagogia dos dias pretéritos e dos dias de hoje – e temos motivos, se a vítima de tudo isso não fosse o nosso querido e sofrido Brasil".