TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 22 de novembro de 2008

Gotas de orvalho


A umidade lhe trazia os aromas orvalhados de lembranças antigas. Queria cultivar a ilusão de que o tempo parara, de que não teria mais que pensar nas agruras advindas desse eterno vazio que carregava consigo.
Olhava para um mundo verde através da janela e sentia-se novamente prisioneira de algum sonho. A cada lembrança, uma coreografia íntima a mantinha ligada ao tempo e ao silêncio. Mesmo assim, parecia ouvir sons difusos, encontros e desencontros nessa dança que sua alma expressava.
Movia-se pelo quarto e revivia aquela linguagem cheia de limitações. Era esse o sentimento de vida que impregnava seus pensamentos. Sobrevivera à fragmentação, à dissolução, à cisão, à ruptura e exilava-se além desses epítetos de um passado opaco.
Parou por instantes. Sentou-se na rede. Aconchegou-se a uma pequena almofada macia. Observou detidamente os objetos e móveis do seu quarto. Nada ao seu redor sugeria qualquer refinamento estético. Tudo era bem rústico, mas acolhedor. Aos poucos ia revelando cada detalhe dentro da alma, equacionando-lhes o sentido. Era um momento de profunda reflexão. Sabia que a esperança seria o próximo porto.
Seu olhar continuava a colher cada nuança daquele ambiente e percorria analiticamente os reflexos cintilantes dos espectros de luz que pousavam sobre uma foto antiga. Absorta punha-se a acariciar o tempo naquele rosto jovem que lhe sorria. Era inegável a emoção e a suavidade que aquele gesto lhe proporcionava.
Cansada daquela letargia, levantou-se meio desajeitada e dirigiu-se ao gabinete. Sentou-se na cadeira giratória. A velha escrivaninha de seu pai parecia convidá-la ao devaneio. Como sempre gostava de fazer, tomou em sua mão esquerda um lápis meio desgastado pelo uso e pôs-se a rabiscar sobre uma folha de caderno. Palavras foram surgindo aos borbotões, jorrando longos parágrafos. Sorria, meneando a cabeça. Percebia que mesmo com tanta simplicidade, poderia surgir dali algo rebuscado, produto de tantos pensamentos contraditórios.
Aos poucos ordenava sobre o papel aquele longo enredo. Alguns trechos tinham vaporizado o que queria dizer, mas cada palavra tinha o tom justo do tempo, a sólida simetria de sua história e tudo que sonhara realizar por longos anos.
Não queria expor complexidades. Queria apenas sintonizar-se com a paz daquele ambiente. Sentia-se ali acolhida pelo passado que brotava do ordinário de sua vida.
Apoiou a cabeça com a mão direita. Escrevia compulsivamente. O banal e o fantástico ali se cruzavam. A realidade se vestia de um exotismo solene e traduzia, naquela expectativa, o momento criativo. A linguagem ia despetaladando a pura emoção do instante...
Não poupava as próprias idéias. Buscava a atualidade como atributo decisivo. Sentia-se encurralada entre a saudade e o impasse de reescrever em sua alma essas novas sensações, essas lembranças rotundas e cristalinas. Essa matéria de que só os sonhos são feitos... Gotas de orvalho.


Texto de Claude Bloc

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Imagem do site: http://imagens.fotoseimagens.etc.br/

2 comentários:

socorro moreira disse...

Um primor !
Na primeira linha , a gente já sabe que a alma da Claude pegou no microfone.
O orvalho da flor é o seu suor ou são pingos das lágrimas dos anjos ?


Poder de encanto possuem seus textos.

Abraços , minha amiga talentosa !

Marcos Vinícius Leonel disse...

Grande magia, Claude, densidade e sutileza ao mesmo tempo. tenho lido os seus textos e tenho tido a impressão de um trem indo em uma tarde azul, mansamente, ganhando o horizonte dos tempos.
blz