Fui menina na Pedra Lavrada
Brinquei na calçada de combinação ...
Cinturão-queimado , cabra-cega ...
Pulei corda , bamboleei ,
dancei frevo , dancei samba
Soltei cebolinhas , chuvinhas e balões,
nas noites de São João.
Apaixonei-me
"Come Prima "
aos 6 anos de idade ...
E com essa idade ,
escrevi minha primeira carta de amor :
"Querido Joaquim"...
(Meu amor platônico).
Esqueci na cartilha do ABC,
e a minha mãe pegou
Ai , que vergonha ...
Tinha opção alem da mentira ?
Culpei uma certa amiga ,
e o meu narizinho cresceu !
Pedalei nas calçadas,
em manhas de sol
Tive falsos crupes
Quebrei três vezes a clavícula ,
torci o pé , outras tantas ...
E eu nem era tão traquina !
Meu corpo se intimidou de medo ,
e nunca mais peraltou !
Na Pedra Lavrada perdi meu avô
Escutei minha mãe parir
Meu pai cantar , assobiar e tomar Brahma
Quis imitar , e ouvi :
"Mulher não assobia ..."
Na Pedra Lavrada dos anos 50
A gente comprava lenha
Comprava leite
Comprava pão ,
pirulitos na tábua ,
cavaco-chinês ,roletes de cana ,
alfenim , macaúba ...
na porta de casa ,
nos carrinhos- de- mão
Tomei injeção no bumbum
de bismuto
com Dona Soledade
E pra completar o tratamento
minha mãe cauterizava minha garganta
com uma solução de "colubiazol "
Comi "crespos" da casa de Dona Santinha
Brinquei de boneca com Nájela ...
E mais outras meninas ...
Próximas ou acanhadas :
Teresa Neuma ( filha de Dona Júlia ),
Valda Farias ( filha de Seu Modesto e Dona Adalgisa),
Irenilde , as meninas de Seu Vicente Chicô :
Lucenir , Suely , Aldeci ...
Cirene de Dona Otília ,
Ziana de Seu Adauto ...
Dólia , Dagmar , Bernadete ...
Lúcia e Joanita Primo .
No quarteirão de cima , os Lemos ...
No quarteirão de baixo , os Siebras ...
No meu quarteirão , o violão de
Vicente Padeiro , e a vitrola do meu pai ,
em toda altura.
Li todos os livros de Dona Liô
Estudei com Dona Neli
Risquei de carvão as calçadas
Fiz vestidos de boneca
Tremi com medo das almas
Acordei com goteiras ,
e a canção da chuva , nas telhas.
Aprendi catecismo no Abrigo das Velhas
Catei carrapetas no parque
Sempre esperando um lobo ,
que nunca veio
Assisti meu primeiro filme no Moderno
Branca de Neve e os 7 anões ... claro !
(O ingresso custava 200 réis)
Meu primeiro livro foi o Patinho Feio
Infância de complexos...
Até descobrir que eu era um cisne ,
foram-se muitas décadas.
Comi chouriço ,
mel de jandaíra,
sequilhos na banha de porco
tripa de porco torrada no jantar
e pudins caramelados ,
sem leite condensado.
Tive tracoma, coqueluche,
febre asiática...
Era um luxo:
tomar guaraná natural
com bolacha creme -cracker
Fomos embalados ,
no ranger do armadores,
vozes entoando samba-canções
ameaçadas pelo bicho-papão e o boi da cara-preta.
Tomamos banho de tina ,
água quebrada a frieza,
com folhas de eucalípto ...
Fazíamos xixi em urinóis
Vestíamos pijaminhas de flanela,
vestidos com sianinha ,
gregas, babados de organdi plissado
sapatos de verniz e meias de seda.
Ouvimos o som do pilão ,
na hora da paçoca ,
que a gente comia com baião
Tomamos água do pote e quartinha
Rezávamos pro anjo-da-guarda, antes de dormir
e acordávamos com o barulho do chiqueiro.
Vi passar uma lambreta
Cantei Celi Campelo
com seus banhos de lua e laços
cor-de-rosa , no cabelo
Comi pão-de-ló
feito por minha avó.
Fumei cachimbos de brinquedo
com folhas secas de alfazema...
(parecia incenso...)
Usei óculos receitados por Dr. Herbert
Acordei de sonhos e pesadelos
Sóbria , ou levemente bêbada ?
Novembro de 2008...
E o tempo voou
Cai no futuro de asas quebradas
Estou viva ...
Embora tenha morrido sete vezes !
2 comentários:
Socorro Moreira faz um apanhado de uma rua dos anos 50 e todas as ruas do Crato, mudando o nome das pessoas, eram assim. Quando um cineasta quiser retratar a cidade de então, eis um material sem igual para o contexto, o texto e os hábitos humanos. Agora tem uma coisa que Socorro se engana redondamente. Novembro de 2008 de asas quebradas. Não é este o pássaro que vemos passar todos os dias como um condor através das alturas dos Andes, tendo como espelho aqui na superfície do Cariricult.
Do Vale : Eu não consigo passar por uma só calçada , nas ruas do Crato , sem recapitular o passado. Os detalhes se amiúdam ... as informações borbulham ...Mas eu sinto preguiça !
Hj foi assim . Passei na Santos Dumont , em frente à casa aonde morou D.Zélia e Seu Almir , e lembrei-me de ti.
Fico feliz , quando te vejo no céu das minhas lembranças.
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