A tendência pragmática é detestar a ficção ou o canto poético. Afinal quem se move pela praticidade dos elementos vê tudo aquilo como uma paisagem de fundo, rápida e que se encontra lá apenas por enfeite. Por isso não é incomum que alguém prefira o manual da ferramenta que utiliza diariamente a um poema ou a um conto. Afinal alguns até preferem testar a ferramenta direto.
Por outro lado, imagens, vivências, expressões, através dos meios das artes, podem, pela técnica em si da própria arte, tomarem cores que nem existiam na origem. Mas são as licenças, ditas poéticas, perfeitamente generalizáveis em todas as artes. Os arranjadores musicais são pródigos em realçar elementos da obra artística, dando-lhes mais força para atingir a emoção do outro.
Não acreditem que estou usando alguma técnica especial para relatar o que me ocorreu ali pela metade dos anos 90. Estava com um grupo do Itamaraty numa missão à África. Em virtude de um problema de embarque de um jogador da seleção brasileira, o vôo até Johanesburgo atrasou e tivemos que tomar a conexão para Luanda imediatamente. Deixamos a bagagem para trás, levantamos vôo atravessando o deserto do Kalahari e depois entrando na paisagem semi-tropical africana.
Um dia a embaixada brasileira nos cedeu um veículo para passearmos até a Ilha de Luanda. Passamos por oficinas de artes com marfim, um comércio variado, pessoas nas ruas e uma feira fenomenal, igual às feiras nordestinas, chamada Roque Santeiro em homenagem à novela do Dias Gomes. Finalmente o carro parou próximo da praia e descemos para sentir o solo do litoral.
A Ilha é toda protegida por projeções de quebra-mar igual ocorre no litoral oeste de Fortaleza desde a praia de Iracema. Estes “pontilhões” são transitáveis e saímos avançando de mar adentro. Os companheiros pararam na metade, mas fui até o limite das pedras. Estava só, o mar, Luanda às minhas costas, águas um tanto esverdeadas, mas turvas pelas marés. A visão abria-se para fora da África em direção da América do Sul.
Naquele ponto, com as águas de Kalunga, fui tomado pelo banzo dos antepassados do lado das águas em que me encontrava. Pela geografia estaria no meridiano de Alagoas, tão distante e improvável de cruzar. O mesmo destino de outro eu, séculos antes das costas das Américas frente ao vácuo da África.
Além do horizonte intransponível o relevo do mundo, a força simbólica de gerações multiplicadas no plantio da cana e na pecuária da caatinga. Lá se encontrava meu passado sem o qual me tornaria espírito errante no cosmo das relações significantes. Além das vagas do mar a minha carne em pólo desfeito daquela união com a mulher e os filhos que tivéramos. Os ossos do solo da América, as luzes das montanhas do Brasil, seus cantos, cores, gritos de dor e a poética condoreira de Castro Alves em ruptura com os grilhões da escravatura.
Agora mesmo olhando para a África vítima das epidemias e das guerras imperialistas, olhei bem nos olhos da civilização e encontrei em algumas músicas todo aquele sentimento na Ilha de Luanda.
A música portuguesa, caribenha e africana de Bonga, que andou com Martinho da Vila e tantos outros brasileiros. A explosão urbana, doída, revolucionária de Fela Kuti no drama de sua Nigéria ensangüentada. O canto, quase um aboio, ou um chamamento das planícies do Congo da suavidade explosiva de Lokua Kanza. Quase como assim o é Habib Koité. E o instrumental de corda africano, os de sopro, aqueles sons especiais do Corá, do Ardin ou da Marimba com a beleza de um cd de Keletigui Diabate e Basekou Kouyate. Mas a fusão colonial se expressa em algo perfeitamente aconselhável de imediata busca na internet pelo som do Soweto String Quartet. Imagine o Egberto Gismonti e sua sofisticação musical e ouça o Moçambicano Gito Baloi. Finalmente encerre a noite na beleza de Miriam Makeba, recém falecida, que um dia explodiu mundialmente com seu Pata Pata um arranjo fenomenal do nosso Sivuca.
Como todo bom americano continuo no meu coração exilado, neste continente abundante da primeira experiência genética da futura humanidade. Aquela experiência em que estamos sempre exilados de algum espaço no qual deixamos pedaços, agora sabemos, da nossa multiplicidade de almas.
Por outro lado, imagens, vivências, expressões, através dos meios das artes, podem, pela técnica em si da própria arte, tomarem cores que nem existiam na origem. Mas são as licenças, ditas poéticas, perfeitamente generalizáveis em todas as artes. Os arranjadores musicais são pródigos em realçar elementos da obra artística, dando-lhes mais força para atingir a emoção do outro.
Não acreditem que estou usando alguma técnica especial para relatar o que me ocorreu ali pela metade dos anos 90. Estava com um grupo do Itamaraty numa missão à África. Em virtude de um problema de embarque de um jogador da seleção brasileira, o vôo até Johanesburgo atrasou e tivemos que tomar a conexão para Luanda imediatamente. Deixamos a bagagem para trás, levantamos vôo atravessando o deserto do Kalahari e depois entrando na paisagem semi-tropical africana.
Um dia a embaixada brasileira nos cedeu um veículo para passearmos até a Ilha de Luanda. Passamos por oficinas de artes com marfim, um comércio variado, pessoas nas ruas e uma feira fenomenal, igual às feiras nordestinas, chamada Roque Santeiro em homenagem à novela do Dias Gomes. Finalmente o carro parou próximo da praia e descemos para sentir o solo do litoral.
A Ilha é toda protegida por projeções de quebra-mar igual ocorre no litoral oeste de Fortaleza desde a praia de Iracema. Estes “pontilhões” são transitáveis e saímos avançando de mar adentro. Os companheiros pararam na metade, mas fui até o limite das pedras. Estava só, o mar, Luanda às minhas costas, águas um tanto esverdeadas, mas turvas pelas marés. A visão abria-se para fora da África em direção da América do Sul.
Naquele ponto, com as águas de Kalunga, fui tomado pelo banzo dos antepassados do lado das águas em que me encontrava. Pela geografia estaria no meridiano de Alagoas, tão distante e improvável de cruzar. O mesmo destino de outro eu, séculos antes das costas das Américas frente ao vácuo da África.
Além do horizonte intransponível o relevo do mundo, a força simbólica de gerações multiplicadas no plantio da cana e na pecuária da caatinga. Lá se encontrava meu passado sem o qual me tornaria espírito errante no cosmo das relações significantes. Além das vagas do mar a minha carne em pólo desfeito daquela união com a mulher e os filhos que tivéramos. Os ossos do solo da América, as luzes das montanhas do Brasil, seus cantos, cores, gritos de dor e a poética condoreira de Castro Alves em ruptura com os grilhões da escravatura.
Agora mesmo olhando para a África vítima das epidemias e das guerras imperialistas, olhei bem nos olhos da civilização e encontrei em algumas músicas todo aquele sentimento na Ilha de Luanda.
A música portuguesa, caribenha e africana de Bonga, que andou com Martinho da Vila e tantos outros brasileiros. A explosão urbana, doída, revolucionária de Fela Kuti no drama de sua Nigéria ensangüentada. O canto, quase um aboio, ou um chamamento das planícies do Congo da suavidade explosiva de Lokua Kanza. Quase como assim o é Habib Koité. E o instrumental de corda africano, os de sopro, aqueles sons especiais do Corá, do Ardin ou da Marimba com a beleza de um cd de Keletigui Diabate e Basekou Kouyate. Mas a fusão colonial se expressa em algo perfeitamente aconselhável de imediata busca na internet pelo som do Soweto String Quartet. Imagine o Egberto Gismonti e sua sofisticação musical e ouça o Moçambicano Gito Baloi. Finalmente encerre a noite na beleza de Miriam Makeba, recém falecida, que um dia explodiu mundialmente com seu Pata Pata um arranjo fenomenal do nosso Sivuca.
Como todo bom americano continuo no meu coração exilado, neste continente abundante da primeira experiência genética da futura humanidade. Aquela experiência em que estamos sempre exilados de algum espaço no qual deixamos pedaços, agora sabemos, da nossa multiplicidade de almas.
2 comentários:
Meu caro José,
quando vieres a Fortaleza,
me telefone, é bem pertinho da África.
Agora, com licença.
Preciso reler o texto -
não por complexidade.
Mas por deleite.
Abraços.
uma viagem a áfrica pelas mãos de zé do vale... musical, cheia de nomes exótico e eróticos. bom pra caralho de ler meu irmão. escuto fela kuti. vou escutar com outros ouvidos.
hasta.
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