TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008


Crônica da Cidade Imóvel

Agora, com esse nevoeiro próprio do período chuvoso, é possível o viajante vislumbrar, em descendo a Chapada do Araripe, a cidade do Crato flutuando em meio às nuvens, com uma imensa âncora pendendo de uma das suas extremidades. Para o viajante mais atento, é possível perceber, acima daquela cidade que flutua, um reflexo difuso, como em negativo, de outra cidade, como se ali existisse um espelho côncavo permanente. Agora aquele viajante que realmente descer a serra e adentrar no âmago da “Princesa do Cariri”, descobrirá que no solo, prenunciando o obscuro, existe outra cidade do Crato.

O Crato é uma cidade prima-irmã da cidade de Laudômia, trazida a lume pela mente brilhante de Ítalo Calvino, no livro “As Cidades Invisíveis”. Assim como o Crato, Laudômia são três cidades em uma, uma dos não-nascidos, uma dos mortos e outra dos vivos. Assim como em Laudômia, no Crato, as três cidades são interligadas, elas interagem de forma que existe uma permanente ilusão de que não existe em hipótese nenhuma a possibilidade desse intercâmbio existencial. Essa ilusão é tão poderosa que cria a estranha sensação de uma cidade única, poderosa, gloriosa, onipresente, completamente alheia à intensa convivência com a cidade dos mortos e a cidade dos não-nascidos. Convivência essa que se dá simultaneamente.

A cidade dos vivos, no Crato, se desprendeu da sua essência transbordada de primazia, no solo, e agora flutua bela e transcendental, por sobre uma arquitetura cinza, inebriada pelo marrom paralisante do conforme e da linhagem. O Crato essencial é uma cidade deveras ocupada, que trabalha incessantemente na manutenção e expansão do material ferroso que dá peso e significância à imensa âncora atrelada a uma das extremidades do Crato, a cidade dos vivos, que flutua, pairando indelével sempre na estranha possibilidade do seria.

A usinagem dessa âncora é feita ostensiva e orgulhosamente. Na cidade dos mortos, a essência da tradição, da família e da propriedade tem a seu dispor residências, repartições públicas, entidades privadas, fundações sócio-culturais, confrarias inusitadas e uma série de outras segregações mantenedoras da ordem, que fornecem material necessário para a usinagem desse inconsciente coletivo, logo transformado em material de largo poder de imobilização, devido ao seu peso irrefutável.

Nessa cidade mórbida existe uma eterna veneração pelo passado, existe uma entronização do tradicionalismo de forma que todo o formol produzido no mundo parece sair dessa cidade. As moedas de troca na convivência social do Crato essencial é a linhagem genética, são os títulos de propriedade e de formatura, bem como as senhas distribuídas na partilha do poder, em que só a alguns é dado a abrangência de compra da mercadoria mais barata que existe nessa cidade, o voto. Essa cidade tem a redoma opaca da religiosidade, legitimada pela presença suprema do bispado, para encobrir os escândalos políticos, econômicos, históricos, privados, públicos e notórios dos seus orgulhosos habitantes, nobres faladores da vida alheia.

A cultura dessa necrópole está fincada nos rincões do Parnasianismo, onde reinam solenes Olavo Bilac e Rui Barbosa, com suas formas fixas patéticas e suas retóricas de bodega nobre. Sua concepção de cultura ativa é a concepção arcaica e achatada dos museus-velórios. Seus atos heróicos foram embalsamados no sorumbático período imperial. Suas referências de dinamismo estão enquadradas em pergaminhos cartográficos, da época do descobrimento. Seus livros são empoeirados e suas músicas foram preservadas em pianolas francesas, com todo o respeito à Inglaterra, para que não se crie aqui um pastelão melodramático, com a corte portuguesa como anfitriã bufona. Mas todos são de boas famílias, com tradição e credo confirmados.

Subindo pela âncora imensa em sua capacidade de estagnação, não como ratos excluídos desse esquematismo, fadado às bordas, mas sim como um rebelde em progressão invasora, o viajante se depara com o Crato que flutua, vivo, mas dormente em sua dolência induzida. Aqui a cultura é plural, embora imberbe, pois existe uma força provinda da manutenção, que impede vôos mais altos, apenas flutuações. Aqui a economia é furtiva, aos poucos a manutenção está perdendo as forças e está sendo implodida, mas o comércio, em alguns pontos, ainda fecha para o almoço e o que vem de fora tem mais valor, pois é assim desde o princípio, a cidade mórbida nunca produziu nada, uma vez que a renda é pública e o vilipêndio é um ato de esperteza. O Crato que flutua é universitário, mas não é pesquisador e nem cientista, é professor, que é chamado de tio, mesmo sendo doutor. É advogado, que é chamado de doutor, mesmo sem encontrar respaldo legal para isso. É médico, que é chamado de doutor, mesmo sem ter nem mestrado.

O Crato que flutua vive no cartão de crédito e no cheque especial, mesmo sendo tido como abastado. Mas é nessa cidade que existem aqueles sem tradição, sem propriedade e sem família, mas que vivem honestamente, que trabalham, que estudam, que pensam em mudar o futuro, que querem deixar as suas marcas, mesmo sendo confundidos com ladrões, com descuidistas, com estelionatários. São grandes homens e grandes mulheres apequenadas pelo peso aniquilador da tradição, que não reconhece seus filhos bastardos. O Crato que flutua tem grandes escritores que não são lidos, tem grandes compositores que não vendem discos, tem grandes atores e diretores que não são assistidos, tem grandes artistas que não são reconhecidos. É esse Crato que é famoso no mundo inteiro pela sua cultura popular e pela riqueza natural de suas encostas.

Ou seja, o Crato que se vê, com uma grande âncora pendurada no pescoço, vive de aparências, pois o Crato essencial suga todas as forças, para poder manter viva a tradição. Já o Crato dos não-nascidos, aquela que vive de reflexos, é uma grande piada. Ela é a projeção das frustrações incontidas do Crato essencial, que imagina ser uma cidade poderosa, incólume, impávida, heróica, vitoriosa, nobre e diletante. É a utopia filosófica do que é sem jamais ter sido. É um grande jardim em que os pavões jogam xadrez e as ninfas bufam essências delicadas. O viajante que desce a serra e vislumbra a cidade que flutua, jamais reconhece de imediato os seus desdobramentos. Só se beber da sua água misteriosa.

12 comentários:

Domingos Barroso disse...

Um texto poderoso,
que necessita de constante releituras - como qualquer tríade.
Abarquem sobre este olhares diversos.
O texto de Marcos Vinicius Leonel é o resultado da sua inteligência e coragem.
Parabéns, meu camarada.

Dihelson Mendonça disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
socorro moreira disse...

Aplausos !


Grande abraço.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

O Leonel, pelo meu ângulo de observação, retorna ao tema que abordou em algumas das suas primeiras postagens aqui no Cariricult. Uma lança profunda nesta autoavaliação que a cidade se faz. Uma lança que atinge um pouco daqueles amores declarados num entusiasmo bem cearense, quando vibra, expande-se e para. O quê o Marcos levanta tem muito daqueles debates sobre o velho e o novo que andou pelos dois blogs. Tem muito da nossa própria saudade dos tempos vividos. A questão toda deste levante geral que, na minha opinião, ocorre nos blogs, é como provocar uma ruptura com estas âncoras que o Leonel identifica. Aliás âncoras que se constróem, inclusive muito além das três cidades imaginárias. Agora o Crato se encontra no curso caudaloso da globalização. Seus bens já não se bastam, seus ar já não é suficientemente evolado no próprio território. O pior é que o modelo da globalização é concentrador e excludente. Os pólos dinâmicos da sua economia são alguns e a maioria fica de fora e ressentida. O Crato inclusive.

Um dos textos mais bens escritos deste ano. O Leonel é um excelente escritor.

Anônimo disse...

Que texto clarividente, seu Marcos ! Estes dois Cratos são bem visíveis para quem acurar os olhos. Alimentamo-nos basicamente de passado. Veja a nossa literatura como explode de memorialistas ! O GRUTAC é tido como o maior grupo teatral de todos os tempos, Célio Silva nosso maior cantor. O Crato não existe depois dos anos 50, ali ficou imobilizado como em uma fotografia. Este texto fenomenal só poderia ter sido produzido por alguém que conhece a noite com os seus sortilégios como nosso grande Lobisomem.
Parabéns !
Zé Flávio

Marcos Vinícius Leonel disse...

Valeu Domingos, embora queiram que a gente se agrida, abraços, meu caro poeta.

Marcos Vinícius Leonel disse...

Dihelson, gostaria de saber o motivo da retirada do seu comentário, abraços, grande maestro.

Marcos Vinícius Leonel disse...

Socorro, beijos e saudades. Como posso falar mal de uma delicadeza como a sua?

bjs

Marcos Vinícius Leonel disse...

José do Vale, filósofo de todas as escolas, essas são as cidades que nos preservam, longe daquela que nós preservamos.

abraços, irmão

Marcos Vinícius Leonel disse...

José Flávio, escritor inspirado, agradeço o seu comentário, embora agradecer, elogiar e filosofar, possam incomodar tanta gente.

abraços

Dihelson Mendonça disse...

Meu querido amigo Marcos Leonel.
Que neste comentário, como sempre gosto de expressar, não quero confundir a amizade com o pensamento, que são coisas às vezes conflitantes.

Já que você foi quem perguntou sobre a exclusão do meu comentário, vou te responder da maneira mais franca e verdadeira que eu sou, repetindo o que disse lá no Blog do Crato:

"Meu prezado Marcos,

Depois de ler e reler seu texto, e de ler e reler meu comentário, resolvi apagá-lo por achar que ele em nada acrescentava à sua obra.

Eu tenho passado a vida a incorporar esse sentimento misto de amor/ódio por essa cidade, CRATO, ora exaltando e ora detonando. Desejo o mesmo que você deseja: progresso.

Só que as semelhanças param por aí, temos pensamentos diferentes. Eu não quero construir um mundo novo destruindo o antigo, como você assim o expõe, iconoclasticamente, quando para mostrar seu próprio pensamento, pisa e tripudia na obra dos Imortais, chutando gênios como Olavo Bilac, Rui Barbosa e tantos outros. Acho que em tudo se aprende um pouco, e como já dizia Nietzsche, "a pior desgraça é aquela em que não se aprende algo dela".

Eu particularmente acho, que é possível uma convivência pacífica entre o novo e o antigo, cada um à sua maneira, entre as diversas correntes artísticas, por exemplo, desde que elas sejam artísticas de fato. Cheguei a achar um dia, ( tão reticente e provocador como você o foi neste texto ), que deveríamos fazer a "revolução dos novos", mas hoje acho que é importante que em uma cidade que olha para o futuro, os novos edifícios possam conviver harmonicamente, como na Europa e estados civilizados, com os velhos edifícios, as ruínas, as fotografias, os museus de cera, etc, e que deles aprendamos grandes lições. Não é destruindo o que já passou e enterrando o passado como um gato enterra as suas fezes que iremos construir um mundo melhor.

Sabe, Marcos Leonel, sou antiquado, "ADORO" Bilac que você tanto pisoteia, Adoro Álvares de Azevedo, Antero de Quental, Bocage, Baudelaire, Machado de Assis, Alberto de Oliveira, Drummond, Cecília Meireles, Adoro Camões, e tantos outros...Adoro Fernando Pessoa, acho até que Fernando Pessoa tem mais covers do que ele jamais imaginou com seus parcos heterônimos. Nem os Beatles têm tantos covers piorados quanto Fernando Pessoa hoje em dia, dizendo o que ele já disse há cem anos 10.000 vezes melhor e mais conciso. Depois que lemos algumas coisas de grandes mentes como Pessoa, Drummond, Borges, Neruda, algumas outras coisas empalidecem a ponto de parecerem ensaios e cópias mal acabadas, pois já não trilhamos a cópia, mas bebemos direto na fonte.

Por isso, respeito todos os grandes mestres, seja na música, na literatura e em qualquer arte, sem tripudiar. Eles não são o que são por mero acaso! Desculpe-me a franqueza!

Acho que não se deve cuspir também nas fotografias antigas das cidades. Devemos tê-las como referência, como lembrança, embora devamos viver no presente, e não no passado. Nisso é que condeno o velho e não o idoso.

Por essas razões, retirei meu ínfimo comentário, ele certamente não fará falta, eis que estava muito distante do que foi tratado no seu belo texto iconoclasta. Mas saiba que continuo a admirar a sua escrita, o seu uso da língua para expressar idéias. Seu texto é muito bem trabalhado. Gostaria eu de me expressar com o comando que você tem do idioma, para poder discordar de muita coisa que você escreveu, assim como concordo em outras tantas, mas eu só sei me expressar dessa maneira rústica e direta da qual usei para me expressar neste próprio comentário.

Um grande abraço,
E um FELIZ NATAL.

Dihelson Mendonça"

Pós nota:
Em sendo este aqui um comentário discordante dos demais tão elogiosos, acho que eu não o deveria ter postado, para não atrapalhar o tráfego. Mas, enfim, foi você que perguntou, e eu não iria mentir a você. Resguardar-me talvez, mas uma vez inquirido, ser sincero ao amigo.

Abraços,

Feliz Natal,

Dihelson Mendonça

Marcos Vinícius Leonel disse...

Beleza, grande maestro, é natural que tenhamos nossas diferenças ideológicas, como também é natural que tenhamos a nossa tolerância intocável para com as outras opiniões e posicionamentos ideológicos. A sinceridade é o combustível do antagonismo, mas não da distância, muito menos do distanciamento. Tenho a concepção de que opiniões não destróem obras e nem maculam reputações, mas fomentam a alienação caso não exista o exercício de emití-las. Creio que a idiossincrasia seja o alento para o equilíbrio ideológico no convívio social das civilizações contemporâneas. Sendo assim, grande maestro, sinta-se sempre em casa para discordar de qualquer postagem minha, da maneira que você bem entender. Se eu tenho esta disposição de acolher contrariedades de desconhecidos, tenho mais ainda de acolher as contrariedades dos amigos.

abraços