TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Anjo da Anunciação



Ronaldo Correia de Brito

Do Recife (PE)


Não pensem que sou a heroína do filme E o vento levou, aquela que lembra o lugar onde nasceu e fica contente. Mas eu também já possuí uma fórmula de felicidade: bastava pensar no Natal que a tristeza ia embora. Pena que sobrou quase nada desse condão misterioso, da fórmula que usei com sucesso tantas vezes.
Alguma coisa aconteceu nas engrenagens da minha varinha mágica. Talvez tenha se modificado o mundo ou eu mesmo. Quem sabe, os dois. Já não consigo acionar a alegria com a palavra Natal, da mesma maneira que os mágicos tiram coelhos da cartola pronunciando abracadabra, e a gruta de Ali Babá desvela seus tesouros com um abre-te sésamo.
Eram tão simples as celebrações natalinas da minha infância, pobrezinhas como o Cristo que louvavam. Nada do corre-corre de hoje, das compras e presentes caros, ceias e bebedeiras. Minha avó paterna Maria de Caldas batia ovos numa tigela de barro, para os pães-de-ló de goma. Arrumava-os numa mesa com toalha de linho, e esperava a visita dos afilhados. Eles chegavam de noite para pedir a bênção, e recebiam um presente modesto, quase sempre sabonetes embrulhados em papel de seda ou dinheiro dentro de um envelope. Comiam pão-de-ló, bebiam aluá de abacaxi, sentavam, conversavam. Os bolos de goma de Maria de Caldas eram dádivas ao Menino Deus.
Dona Dália do Boqueirão, minha avó materna, nunca se esmerou na arte culinária. Seu presente para os netos era um pequeno presépio com as figuras confeccionadas por ela mesma, com a lã da ciumeira, que parece algodão. Ela fazia carneiros, bois, camelos, burrinhos, anjos e pastores, tudo com a lã sedosa e esvoaçante. A leveza da pluma emprestava às figuras uma natureza celestial e etérea. Eu imaginava que os bichinhos fugiriam pelas portas e janelas da casa de minha avó, na noite de Natal, para uma festa no céu.
Quem me levou para ver a brincadeira da Lapinha pela primeira vez, foi Maria Luíza, uma engomadeira de roupas da nossa casa. Também foi ela quem me arrastou para olhar um preso enforcado, no porão da cadeia do Crato. As duas imagens, o sublime do pastoril e a violência da morte, se associaram dentro de mim, talvez porque a mesma mão de mulher me conduziu aos dois espetáculos. Qual das mãos eu segurava, direita ou esquerda, quando subi ao céu e desci ao inferno? Nunca saberei.
Maria Luiza presenteou-me com as asas do anjo e as da borboleta. Já que eu não podia brincar na Lapinha, desejava possuí-las. Por que não preferi o pandeiro da cigana, ou o maracá da pastora, ou o cajado de José? Que vôos eu sonhava fazer?
Não sei se exagero, mas os presentes de Natal me pareciam dádivas, porque as pessoas se ocupavam com eles. As três irmãs solteiras do alfaiate José de Rita gastavam o ano preparando a lapinha mais famosa do Crato. No primeiro de dezembro elas abriam as portas da casa, e mostravam a cenografia mirabolante. Imagine qualquer raridade, e ela estaria representada nas cenas do presépio. Exaustas, por onze meses de trabalho, as irmãs sentavam em cadeiras, e se divertiam com os rostos assombrados dos visitantes. O único motivo de suas existências era encantar as pessoas.
Outro dia, presenciei uma cena que despertou em mim a alegria natalina. Entrava na unidade de terapia intensiva do hospital em que trabalho, quando reparei numa paciente tocando a campainha, e pedindo acesso. Pálida, com as pernas inchadas, ela vestia uma bata e tinha um soro instalado na veia. Entrei e esqueci a cena. Não sei quanto tempo se passou. De repente ouvi um canto solene, que fugia à realidade sonora de uma UTI.
A paciente que chamou à porta cantava de olhos fechados, um canto religioso, tão alto que era impossível não escutá-lo em qualquer lugar. Louvava a Deus e celebrava a existência. Na sua frente, uma outra mulher respirava com ajuda de aparelhos. A cantora tivera alta da UTI, e conhecera na enfermaria a que agora se encontrava em coma. Viera cantar ao pé do seu leito, ajudá-la a curar-se. Ela que descera até o porão da morte, conhecia o caminho que conduz à vida.
A segunda paciente também se curou. Está vivinha, contando a história que escrevo para vocês. Acredito no poder da ciência e da medicina. Também acredito na força do canto. Natal tem essa magia. Soterrado pelo entulho do consumo, vez por outra é possível despertar a sua música. Como a voz do Anjo da Anunciação, ou a dessa mulher que venceu a própria morte.
Feliz Natal!


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

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