A Viagem do Elefante – José Saramago
Um mestre conta uma história
Depois de tantos anos com uma idéia na cabeça, desde 1999, Saramago entrega ao público uma viagem inusitada, cheia de ironias vigorosas, nada vigaristas, e sempre atravessando seus alvos com travessões travessos, questionadores da mormência histórica, obstinada em empilhar fuligens racionais por sobre os devaneios reais dos seres humanos em pleno absurdo da existência.
A idéia dessa narrativa surgiu quando ele almoçou em um restaurante de Salzburgo, na Áustria, chamado O Elefante, a convite de Gilda Lopes Encarnação. Neste restaurante algumas pequenas esculturas em madeira chamaram a atenção de Saramago, que logo ficou sabendo que eram representações de edifícios, que demarcavam a longa viagem de um elefante, de Lisboa a Viena. Nascia ali um conto singelo.
A narrativa se baseia na manobra diplomática envolvendo o elefante Salomão, que no século XVI, mais precisamente em 1551, cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, dado como um presente, embalado como um golpe baixo e conduzido como uma esfinge. Dom João III, rei de Portugal e Algarves, casado com dona Catarina d’Áustria, resolveu oferecer ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos V, como presente de casamento, o elefante, muito menos por se tratar de uma imensidão, do que pelo tamanho maior da desculpa em não recebê-lo.
O livro levou cerca de dez anos para ganhar forma e foi escrito durante o período em que o escritor maior da língua portuguesa estava acometido por uma estranha e impertinente doença respiratória. O próprio autor achou que não escaparia e a narrativa ficaria inacabada. Mas, para o bem geral do povo culto, Deus disse que ele ficaria mais. Assim podemos conviver com mais esse filho da família Saramago, dona de uma linhagem astuta, elegante, provedora de signos e ironias, para além das habilidades técnicas da escrita, já nos domínios das esferas infinitas.
De acordo com Pilar del Río, mulher de Saramago, o autor entende essa narrativa como um conto e não como um romance. De fato, essa é uma deliciosa história contada ao pé da fogueira em um quintal vizinho. No entanto, nem de longe essa é uma obra pequena, claro que sem o fôlego de um O Evangelho Segundo Jesus Cristo, mas com o encantamento de Uma Jangada de Pedra. A técnica é de um exímio esgrimista em duelo indefinido com as palavras, com a planta dos pés postada no fio da navalha da criação.
A estética é nominal, leva a assinatura da contemporaneidade da obra de José Saramago, singular e plural, dialética, incontida em suas junções e disjunções, em suas diacronias e sincronias. A fusão entre história e ficção é uma das grandes janelas que arejam os ares da cansada literatura universal. Saramago é um dos seus mestres. É um duende que extrai de datas,decretos, de formulários e de protocolos, o sangue humano em sua mais sofisticada inventiva existencial.
Saramago fundamenta a história de Salomão, o elefante presente, e de seu conarca, o indiano Subhro, na mais pura metalinguagem, em que um narrador, que oscila em ser às vezes sim e às vezes não, observador, destila uma ironia fina sobre o ato da poética, sobre os valores da significação e sobre as intenções da escrita. O humanismo do teatro universal de Saramago está em todas as linhas, redimensionando os seres vivos, os mortos e os ressuscitados. As entranhas da convivência humana são revisitadas mais uma vez, como sempre, em tom quase que anárquico.
A forma como Saramago trata as formas do discurso continua a mesma. As falas são anunciadas apenas por maiúsculas, após vírgulas ou pontos. Os parágrafos são imensos, com imensas frases entrecortadas por imensas vírgulas. Agora as maiúsculas só aparecem para fundarem uma nova frase ou indicar uma fala, e não mais do que isso, todas as necessidades do uso delas está descartada, exceto as citadas. Existe um quê de descontinuidade e fragmentação no discurso poético de Saramago. Ele constrói para desconstruir, convidando o leitor para participar de seus estranhamentos específicos. Não podia faltar um toque de absurdo e de fantástico, senão não seria uma saga de Saramago.
Da mesma forma não poderia ficar de fora a abordagem especial que ele faz da estrutura caricatural da família real portuguesa, com seu ar infinitamente beócio, com suas digitais decadentes e seus rastros indolentes fincados no molde absconso da história. A burocracia patética do Estado português também recebe as suas devidas considerações irônicas. A igreja também é referenciada em seus mecanismos de burlas e dominações nefastas.
Entre tantos protagonismos da saga da comitiva, o episódio em que o elefante Salomão é obrigado a forjar um milagre, ao se ajoelhar frente à basílica de Pádua e frente a inúmeras autoridades do clero, para combater a expansão do luteranismo, é um caso à parte. É tão hilário quanto contundente o leitor se deparar com o livre comércio dos pelos do elefante como relíquias.
Assim conta o narrador, com ironia corrosiva, “Solimão (o elefante muda de nome ao chegar às mãos do arquiduque) recebeu em troca uma generosa aspersão de água benta que chegou a salpicar o conarca lá em cima, enquanto a assistência unanimemente, caía de joelhos e a múmia do glorioso santo Antônio estremecia de gozo no túmulo.” Esse é apenas um pedacinho dessa deliciosa jornada. Descubra você mesmo ela por inteira. Ela é encantada, como tudo que sai da imaginação desse fenômeno chamado José Saramago.
2 comentários:
Digo, todas as necessidades de uso dela estão descartadas...
"IRONIAS VIGOROSAS, NADA VIGARISTAS".
Marca indelével da escrita de Saramago.
Abraços.
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