A história sem embustes
Os donos do Poder – Raymundo Faoro A história da formação do Estado brasileiro
Muito mais infecciosa e nociva do que a interpretação bronca da história é o assujeitamento ideológico que se faz dela. O embuste ideológico da formação do estado brasileiro atende a vários interesses escusos, devidamente dissimulados pela santidade e pela pilantragem dos que estão no poder ou daqueles que dele querem se assenhorar. Eis uma questão de durabilidade e conservação. No intuito de separar o dito do não dito, a pústula da posteridade, bem como o prazo do vencimento, nada melhor do que uma leitura apurada do livro “Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro”, de Raymundo Faoro, esse sim, um verdadeiro patrimônio imaterial da cultura brasileira.
Verdadeiramente essa é uma obra plural, com verdadeiros desdobramentos dentro da história, da sociologia, das ciências políticas, da antropologia e da economia. O livro “Os donos do poder” segue uma trajetória típica de uma obra referencial para todos aqueles que pretendem conhecer a fundo a formação do estado brasileiro, sem embustes, diga-se claramente. Raymundo Faoro desenvolveu uma larga pesquisa e tornou pública a sua tese em 1958. A primeira edição desse livro tinha pouco mais de duzentas páginas, sendo que o autor fez algumas revisões e acréscimos ao longo dos anos, sendo que em sua última edição, em 2001, ela atingiu 913 páginas, que tornaram imensas as suas propriedades.
Faoro tem um estilo próprio, com um poder de contextualização peculiar, bem como um poder imagético fora da órbita tecnicista. Como toda obra referencial tem suas próprias referências, foi em Max Weber que Faoro instituiu o seu ponto de partida para sua tese, valendo-se principalmente dos conceitos de “patrimonialismo”, “estamento” e “capitalismo dirigido”, além de outros conceitos, largamente utilizados por Weber em sua monumental obra “Economia e Sociedade”. Assim, a tese defendida por Faoro e acolhida por um número extremamente significativo de estudiosos do mundo inteiro, foge da concepção marxista da formação do estado brasileiro através de uma herança imperial de vassalagem, bem como do dualismo defendido por Celso Furtado e seus simpatizantes.
Em seu caminho paralelo ao cânone e fundamentado em aprofundamentos históricos, além do mapeamento de documentos e a ordenação simplista de fatos, - expedientes típicos dos historiadores escravizados pelo apelo das bijouterias midiáticas e pela miopia de patranhas das pesquisas engendradas em folhetins lidos nas salas de esperas de proctologistas – Faoro faz um abalisado estudo crítico da formação do estado português, desde a sua fundação com a dinastia de Avis, para chegar ao Brasil colônia, Brasil império, com o Brasil república de Getúlio Vargas. Faoro analisa detalhadamente como surgiu e como recrudesceu o patrimonialismo da monarquia portuguesa, em que o estado é patrimônio do rei, absoluto em sua engorda de autoritarismo, ficando abaixo apenas de Deus, em que pese aí o complexo aparelhamento de dominação do coloio igreja e estado.
Depois de estabelecer as raízes e a expansão do patrimonialismo tradicional em Portugal, Faoro chega ao patrimonialismo modernizador da era pombalina na segunda metade do século XVIII, revelando em minucias a máquina opressora do estado portugues através da horda parasitária da aristocracia transformada em uma elite burocrático-técnica a serviço do estado, sendo ela mesma propriedade inconteste do rei, alimentada e dominada pela generosa distribuição de títulos e benefícios imediatos, criando assim uma extensa e podre rede de corrupção despótica, em que o famoso “Livro da Capa Verde” – Regimento Diamantino – é um indelével exemplo da crueldade tirânica que estruturou a ganância e a bandidagem da monarquia portuguesa no Brasil.
Quando Faoro analisa a transição do patrimonialismo modernizador para o patrimonialismo estamental liberalista do Brasil imperial, contextualizando todo o arcabouço de tramóias, canalhices e usurparções geridas pela chegada da família real, pelo repatriamento carcerário do rei, pela regência mórbida e derrocada frente à república, até chegar aos estamentos e cooptações políticas da velha e nova repúblicas, tem-se a nítida revelação de que as fundações de um modelo político com origens feudais, a partir da posse de terras, com seus mecanismos monárquicos de manutenção do poder é apenas um simulacro da realidade do patronato político brasileiro. Percebe-se facilmente, sob a nitidez crítica de Faoro, que a nefasta práxis de apoderação do patrimônio público, através de roubalheiras, acordos e politicagens, por parte dos representantes públicos, é na realidade uma herança portuguesa, com certeza, viabilizada pela perenização dos estamentos oriundos dacriação do estado portugues e da colonização brasileira.
Obviamente a falta de uma estratificação mais detalhada sobre os vários tipos de estamentos, como uma exposição aprofundada da participação da igreja, das armas e do sistema educacional, desde a criação e manipução de um cânone, até os desdobramentos desses tentáculos de manutenção do poder nos ensinos básicos, não mancham absolutamente em nada o mérito indiscutível dessa obra. Vale salientar, também, que o tempo de leitura e o aparato intelectual para a abordagem dessa obra fantástica, vão muito além do necessário para se abordar periódicos canhestros como a veja, cadernos provincianos do Diário do Nordeste e toda uma gama de anedotários do google e cia.
2 comentários:
Parabéns pela análise Marcos, e que ela sirva de estímulo para muitos amigos nossos aqui do Blog.
Valeu, João,
um comentário desses vindo de um professor da sua envergadura intelectual e da sua reconhecida capacidade pedagógica, serve de estímulo é para mim.
abraços
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