Hoje despojada do internacional,
restou esta pia de cozinha,
o ferro de engomar,
as fraldas de cocô,
a parca renda familiar.
Restou esta “menor”,
o nome encoberto com uma tarjeta,
estuprada,
abortada,
móvel da ira episcopal.
Hoje despojada da saúde pública,
restou este HPV,
os cânceres do teu ser no mundo,
omisso,
falho e mercantil como um plano de saúde,
um escárnio do poder municipal.
Hoje, mulheres,
ontem o mundo te adoçou em chocolate
flores vivas em tuas mãos,
como antes o povo Sêneca,
aprisionava-te e mimava,
até o dia do sacrifício ritual.
Restou a gravidez precoce,
a agressividade masculina,
a dupla jornada de trabalho,
a ditadura da eterna beleza,
a vida, deste modo vivida,
como apontamentos dos céus.
Sabemos, todos sabem,
da regra geral da pobreza popular,
das balas que matam os jovens rapazes,
do sofrimento do transporte coletivo,
das falhas da política educacional,
mas não é possível adoçar,
o mundo das mulheres,
sem antes a consciência que reflete,
tudo que um dia promete,
mas que anoitece para outro amanhecer.
Um comentário:
Não já foi dito que os telhados dos barracos dos cortiços são fatos estéticos? Drummond não disse que os homens eram a sua matéria?
Eis a prova de que é possível a poesia sobrea a realidade. A poesia está ali, no saco de contradições, aguardando o olhar atento de um poeta, como as imagens nas cidades esperam incansavelmente a presença de um fotógrafo. Felizmente eles aparecem e escrevem com luz e com palavras.
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