
Com quantas tampas de garrafa se constrói um discurso? Com quantas latas amassadas entre os dedos se fabrica um poema, uma música, uma história? Os barrigudos não deixarão herdeiros à altura. Cazuza facsímila Chico Xavier e reclama de suas músicas mixadas na micharia. Raulzito entra nos sonhos do gnomo disk jóckey e confessa não entender o discurso do prolixoberto Gil, nem tampouco a gravata que enforca chiquita bacana Veloso. Todos os juazeiros são iguais: mesmas raízes, mesmos espinhos, mesmos frutos pequenos de sabor duvidoso. Do norte ou da Bahia, barrigudos quase extintos sonham senhas pequeno burguesas, enquanto bebem hectolitros de douradas damas geladas. Aqui, como ali, como lá, artistas amam tanto seu próprio umbigo que detestam outros artistas. Aqui, ali, acolá, a cerveja balança a rede de lunáticos, venusianos, marcianos e terráqueos que sonham enfiar o nariz na tomada, aparecer no faustão, beijar a boceta sempre jovem de Xuxa. Barrigudos sonham sindicatos, clubes prive, música criativa brasileira em vez de música popular brasileira. Comunidades discriminadas se auto-discriminam em favor de uma pretensa modernidade. Eu, o escriba, quero que alguém puxe a cordinha do ônibus, quero chamar o garçom pelo nome, quero beber cerveja, ler cerveja, comer cerveja e sonhar que, uma noite dessas, como que por encanto, os outros levantem os olhos e vejam quantas estrelas nos olham. É bom para os que nem sabem amarrar os cadarços dos sapatos.
4 comentários:
"Aqui, como ali, como lá, artistas amam tanto seu próprio umbigo que detestam outros artistas."
Essa é 1000%
Será por que os artistas aprenderam que nesse mercadomundo até um orgasmo é mercadoria, e na concorrência as mãos se mantém o mais longe possível? De certa forma, a arte não tem mais aquela coisa sagrada. A arte é uma mercadoria, e o artista é um comerciante. Amar tanto o umbigo faz parte do marketing pessoal. O sujeito tem que sair bem na foto, pra agradar o cliente. E de preferência, deve ser o primeiro da fila. E além da moeda comum, o cascalho, pro sujeito que vive dessa arte, há uma moeda menos pesada, praqueles que vivem de outros ofícios, mas fazem um bico no campo da arte: a admiração alheia. Comparado a essa moeda, o dólar é fichinha.
Sua frase, rapaz, é fatal.
"E além da moeda comum, o cascalho, pro sujeito que vive dessa arte, há uma moeda menos pesada, praqueles que vivem de outros ofícios, mas fazem um bico no campo da arte: a admiração alheia. Comparado a essa moeda, o dólar é fichinha."Caro Chagas, lembrou-me de duas histórias que ouvi sobre Carlos Paredes, o grande mestre da guitarra portuguesa.
Apesar do imenso respeito, carinho e admiração que este grande músico recebeu por todo o país, não só da elite cultural mas também do povo e ao ponto de ser decretado dia de luto nacional quando faleceu, manteve a sua humilde profissão de arquivista de radiografias para o Ministério de Saúde. Diz-se que certo dia, quando a fama já o perseguia, uma colega perguntou-lhe porque não largava o emprego para se dedicar à música a tempo inteiro, à qual respondeu que preferia não depender financeiramente de sua arte.
Posso até admirar a coragem de quem arrisca sonhar e alcançar a liberdade artística fazendo da arte sua profissão, mas admiro mais a humildade e sabedoria do mestre Paredes.
Entre uma prisão material e outra, escolheu aquela que lhe ofereceu a liberdade artística mais imediata e segura. Mas enfim, levo em conta a possibilidade que a sua sabedoria foi fruto de uma outra experiência. Reza a segunda história que passou como louco entre companheiros numa prisão da Polícia Secreta, no tempo da ditadura, enquanto andava de um lado para o outro de sua cela fingindo tocar música. Na verdade, ocupava seu tempo compondo músicas...
Liberdade, a quanto obrigas...
Um grande músico que manteve a humilde profissão de arquivista de radiografias e preferiu não depender financeiramente de sua arte é um caso raríssimo. Ainda mais num mundo em que ser artista pode significar ser uma estrela.
É... Neste mundo, tem artistas que fazem qualquer coisa para se tornarem "estrelas" e tem artistas que, sem buscar ser o que quer que seja, brilham tanto quanto a estrela do norte.
Mas enfim, talvez o brilho dos últimos seja uma das principais causas da ambição dos primeiros.
E talvez alguns primeiros, inspirados pelos últimos, um dia se tornem os últimos... e vice versa.
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