TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 6 de maio de 2009

UM DIA JÁ FOI SOLTO

Quem habita aquela cela um dia já foi solto. Hoje prisioneiro, uma pena. Não muitas penas. Pena por ser miserável, outra por ser mulato, na terceira a falta de escola, quarto nem ponte de arrancho. Desemprego é sina. Cachaça mata sede e fome. A raiva respiração e o nojo o travesseiro de dormir.

Tudo que tinha se perdeu. Os aderentes escorreram na correnteza. Os parentes esconderam-se atrás dos móveis. Os antepassados se esqueceram. Os descendentes nem nasceram. A última camisa é molambo e a calça duas janelas de expor joelhos. A rua sua floresta, as baratas seu colchão e os ratos seu zoológico.

Lixos sem seleção. Esgotos por riacho. Peladura em cão magro. Folhas de jornal feito lençóis. Trapizongas de idéias. Amontoados de trastes. Aparas de sentimentos. Olhar fosco, pupilas opacas, remelas mumificadas, cílios faltosos. Barbas emaranhadas, cabelos endurecidos, lama ressecada sobre os lábios, orelhas de cascão arqueológico.

Quem habita aquela cela um dia já foi solto.

2 comentários:

Marta F. disse...

Sensibilidade a sua.

Louvado seja o tempo livre para os olhares aos lugares críticos do mundo.

Caro José, meu afeto.

Domingos Barroso disse...

"e a calça duas janelas de expor joelhos. "

Um forte abraço,
José do Vale Pinheiro Feitosa.