(TRECHOS DA MINHA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEFENDIDA EM 1992 NA COPPE/UFRJ)
Bernardo Melgaço da Silva
Nossa compreensão das coisas depende essencialmente de nossa percepção íntima do significado das palavras "princípio" e "verdade". Faz-se necessário descobrir e vivenciar estes significados para não ficarmos confusos diante dos vários conceitos que formulamos para eles, não conseguindo distinguir entre os princípios e as formas diferenciadas de expressão das suas verdades.
A verdade é a forma de percepção de princípios que se manifestam como fenômeno. Pois, conforme VERGEZ e HUISMAN (1980):
"O homem se preocupa em conhecer o mundo e atuar sobre as coisas antes de se voltar para si mesmo, de "re-fletir" sobre a fonte do conhecimento e da ação. Todo homem, entretanto, seja o mais frívolo, o mais inclinado a se esquecer na ação, a se "di-vertir", como dizia Pascal, se encontrou, mais uma vez, numa hora de dissabor, a sós consigo mesmo. Como o poeta, ele disse para si: "Eis-te aí". Os convidados já se foram, na escada já não mais ressoa o rumor de seus risos; encontramo-nos, brusca e unicamente, em face de nós mesmos. E nos interrogamos: "Quem sou?" e "Que é esse eu que existe?"
Essas duas perguntas não são idênticas e a primeira nos faz, muito facilmente, esquecer a segunda. "Quem sou?" A resposta é bastante fácil. Indicaríamos nossa profissão, nossos hábitos, nosso caráter [...] Mas tudo isso, o problema metafísico do eu não é abordado. Trata-se apenas de fazer análise do conteúdo do eu, de explorar sua personalidade, não de definir porque somos uma pessoa [...] Cada um de nós é pessoa e não coisa, sujeito e não objeto" (p.305).
Como muito bem abordaram VERGEZ e HUISMAN, existem duas questões importantes a serem esclarecidas: a "Quem sou" e "Que é esse eu que existe"? A primeira dessas perguntas está relacionada à sensibilidade de percepção dos princípios formadores do conteúdo do eu. A segunda geralmente está associada às nossas verdades ,ou seja, aos nossos valores de juízo e conceitos. Esta sensibilidade a que me refiro corresponde à intuição. Em analogia ao "sinal de entrada" - em eletrônica, FERREIRA (1975) assim define sensibilidade:
"Sensibilidade: [...] Fís. Medição da capacidade de resposta de um instrumento de medida, usualmente expressa pelo quociente da intensidade do sinal de saída pela intensidade do sinal de entrada.[...] Automat. O minímo sinal de entrada capaz de causar, num sistema , um sinal de saída com características determinadas" (p.1287).
Em eletrônica a percepção do sinal de saída depende de como o medimos. Se não tenho um instrumento adequado para realizar a medição, a minha resposta será insatisfatória. Na natureza humana se não utilizarmos os "instrumentos" (sentidos) adequados operando em condições ideais (ambiente, método, frequência ,etc.) também teremos respostas bastante aquém do esperado.
4.1 VIVÊNCIA E EXPERIÊNCIA
A expressão "realidade" muitas vezes é utilizada no lugar de princípios. Isso faz com que quase sempre demos "saltos" em nossas explicações das diversas questões. Isto porque nossa realidade é resultante da interação das vivências e experiências dos princípios, manifestos em nossa existência. Sobre este "produto" fazemos um trabalho de codificação, que denominamos "verdades". Assim pensam VERGEZ e HUISMAN (1980) a respeito dessa questão:
"Para o senso comum , como para a ciência, a idéia de verdade representa o termo de uma pesquisa, a solução de algum problema. Mas o próprio da metafísica é transformar as próprias soluções em novas questões. Assim é que a verdade, por sua vez, se torna problema para o filósofo.
[...] Um objeto , um ser (este tapete, esta lâmpada) será qualificado como real. Esta lâmpada é real, em outras palavras, ela existe. Esta escrivaninha é real. Mas não teria nenhum sentido dizer-se: Esta escrivaninha, esta lâmpada, são verdadeiras (ou falsas). A verdade é um valor concernente a um juízo. Assim , por exemplo, o juízo: "essa escrivaninha existe, é vermelha ", é um juízo verdadeiro, ou então, falso. A "verdade" ou a "falsidade", portanto, qualificam, não o próprio objeto, mas o valor de nossa observação"(p.293).
A verdade formada a partir da percepção resultante das experiências e/ou das vivências dos princípios, é incompleta quando apenas experienciada. Para ser completa é necessário que seja vivenciada. A própria palavra "vivência" necessita ser vivenciada, e não ser confundida com a expressão "experiência". A vivência é uma experiência intíma, que transcende a experiência comum. Podemos vivenciar uma experiência, mas não podemos experienciar uma vivência, pois existe aquí uma hierarquia de princípios:
"ERLEBNIS- Termo alemão que se pode traduzir por "vivência", "experiência viva" ou "vivida" e com o qual se designa toda a atitude ou expressão da consciência. Dilthey serviu-se especialmente da noção, assumindo-a como instrumento fundamental da compreensão histórica e, em geral, da compreensão inter-humana" (ABBAGNANO,1982,p.322).
Essa hierarquia de princípios operante entre vivência e experiência diz respeito à pesquisa científica. Se experiencio mas não vivencio "minha" pesquisa como cientista não exercito o princípio de verdade. Não conseguirei por conseguinte ser autêntico nas verdades de princípios que me proponho divulgar. Einstein era uma dessas poucas pessoas que possuía sensibilidade para distinção entre experiência e vivência. Assim, ele comentava:
"Encontramos e respeitamos esta segurança na matemática. Mas ela se obtém à custa de um continente sem conteúdo. Porque os conceitos não correspondem a um conteúdo a não ser que estejam unidos, mesmo de modo muito indireto, às experiências sensíveis. Contudo, nenhuma pesquisa lógica pode afirmar esta união. Ela só pode ser vivida. E é justamente esta união que determina o valor epistemológico dos sistemas de conceitos.
[...] Porque com os conceitos arcaicos de nosso pensamento , nós nos achamos em face da realidade da mesma maneira que nosso arqueólogo diante de Euclides" (EINSTEIN, 1981,pp. 164-165).
O que será que Einstein queria dizer com as expressões "experiências sensíveis" e "vividas" ? A verdade einsteiniana de vivência e experiência era a mesma que a do cientista-padrão contemporâneo?
Analisemos mais um pouco o pensamento de Einstein:
"Não sabemos praticamente quais imagens do mundo da experiência nos determinaram à formação de nossos conceitos e sofremos terrivelmente ao tentar representar o mundo da experiência, para além das vantagens da figuração abstrata, com a qual somos forçados a nos habituar. Enfim, nossa linguagem emprega, deve empregar palavras inextrincavelmente ligadas aos conceitos primitivos e com isso aumenta a dificuldade para separá-los. Eis portanto os obstáculos que barram nosso caminho, quando procuramos compreender a natureza do conceito de espaço pré-científico" (idem, pp.164 e 165).
Ao afirmar que "não sabemos praticamente quais imagens do mundo da experiência nos determinaram a formação de nossos conceitos", ele faz referência a um mundo de experiências que influencia nossa verdade a respeito da realidade. E quando queremos ir "para além das figurações abstratas", sofremos terrivelmente. Podemos ver que Einstein faz uma distinção entre experiência e vivência, o que me faz crer que ele tinha essa noção e aplicava em seu processo de pesquisa. Quando ele diz "Estudem a fé", ele certamente toma estudar no sentido de pesquisa interior.
Um princípio superior não é objetivado por um princípio inferior: a razão não consegue objetivar a intuição intelectual. A ação de medir não objetiva o padrão de medida que é representado, por exemplo, por uma régua : "conseguimos medir através da régua mas não a régua", pois a ação de medir é um princípio de ordem inferior ao princípio da medição. DESCARTES (1935) era consciente dessa relação. Assim ele diz:
"Era meu constante desejo aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e proceder com segurança nesse sentido.
[...] Mas , depois de ter empregado alguns anos em estudar dessa forma no livro do mundo, em procurar adquirir um pouco de experiência, tomei um dia a resolução de estudar em mim mesmo e de empregar todas as forças da minha mente em escolher o caminho a seguir: e me saí melhor, parece, do que se nunca me tivesse afastado do meu país e dos meus livros" (p.18).
Continuemos a analisar o pensamento de Descartes:
"Minha terceira máxima consistia em procurar sempre vencer antes a mim do que a fortuna, em mudar antes os meus desejos do que a ordem do mundo e, de um modo geral, em habituar-me a acreditar que não há nada que esteja tanto em nosso poder como os nossos pensamentos, de maneira que, depois de têrmos feito todo o possível no que diz respeito às coisas que nos são exteriores, tudo o mais que não conseguimos, a nosso respeito, é absolutamente impossível" (p. 36).
Nessa afirmação Descartes procura mostrar que, depois de ter experienciado a realidade no "livro do mundo", tomou "um dia a resolução de estudá-la nele mesmo". Em sua terceira máxima ele mostra a sua decisão de vivenciar: "procurar sempre vencer antes a mim do que a fortuna, em mudar antes os meus desejos do que a ordem do mundo ...".
Somente se pode demonstrar aquilo que é passível de experiência. No plano da experiência podemos realizar experimento e depois demonstrá-lo em diversos momentos, reproduzindo-o para um número indefinido de pessoas. No plano da vivência isso não é possível porque contradiria o princípio da fé, uma vez que a fé só pode ser vivenciada. Sendo assim, a própria fé é um dos princípios fundamentadores da vivência.
"Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de que não passa de uma hipótese: não pode ser comprovada jamais. Não importa quantas vezes os resultados de experiências concordem com uma teoria, não se pode ter certeza de que , da próxima vez, o resultado não vá contradizê-lo" (HAWKING,1988,p.29).
A lei científica é uma das diversas formas de interpretação dos princípios que governam a natureza. Não é nem exlusiva nem exludente de outros tipos diversos de verdade sobre o mundo (verdades de estética, religião, metafísica):
"A natureza é, no todo, mais rica que o conhecimento a que a física chega através de seus métodos quantitativos e que são seletivos tanto em seus dados quanto na interpretação destes. A física é uma ciência da natureza limitada pelas próprias seleções que faz da realidade externa, bem semelhante ao ictiólogo que usa uma pequena rede de pesca, exemplo que Eddington tornou bem conhecido. Igualmente, o próprio fato de suas conclusões se basearem em experimentos implica que sua validade mantém-se apenas dentro das condições destes experimentos. A física então, como as outras ciências da natureza, é uma ciência específica das coisas, legítima dentro de suas próprias suposições e limitações, mas não é a única ciência válida do mundo natural. A física nos dá um certo conhecimento do mundo físico, mas não todo o conhecimento de que se necessita, especialmente na medida em que diz respeito à relação integral entre homem e natureza. As próprias qualidades, formas e harmonias que a física deixa de lado devido a seu ponto de vista quantitativo, muito longe de serem acidentais ou desprezíveis, são os aspectos mais estreitamente ligados à raiz ontológica das coisas. É por isso que a aplicação de uma ciência que despreza estes elementos provoca desequilíbrio e gera desordem e feiúra, especialmente num mundo onde não existem outras ciências da natureza e não há sabedoria ou sapientia que possa colocar as ciências quantitativas da natureza em seus devidos lugares no esquema total do conhecimento.
Devido à ausência desta ciência total esquece-se também que os fenômenos participam de muitos níveis cósmicos e sua realidade não se esgota num único nível de existência, o último de todos, o material. [...] Por esta razão não há uma única ciência da natureza, mas sim diferentes quadros e visões do mundo, cada um válido até o ponto em que pode descrever um denominado aspecto da realidade cósmica. Não é verdadeiro dizer-se que o sol é apenas gás incandescente, embora isto seja um aspecto da realidade. É também tão verdadeiro quanto dizer-se que o Sol é o símbolo do princípio inteligente do Universo, sendo que este elemento é um aspecto de sua realidade ontológica tanto quanto as características físicas descobertas pela astronomia moderna" (NASR,1977,p.120).
Os princípios de natureza intrínseca são vivenciados; os princípios de natureza extrínseca são experienciados. Aqui radica a distinção entre revelação e descoberta. Vejamos o que diz Einstein (apud, ROHDEN, 1989):
"Eu penso 99 vezes, e nada descubro; deixo de pensar, mergulho num grande silêncio - e a verdade me é revelada" (p.55).
A descoberta é o lado exterior da revelação e a revelação é o lado interior da descoberta. O princípio da complementariedade ocorre na relação entre esses dois universos. O conhecimento é o produto da descoberta, enquanto o autoconhecimento é o produto da revelação. A descoberta ocorre por intermédio de um trabalho de percepção (y). A revelação por sua vez ocorre por intermédio de um trabalho de percepção (z). Uma analogia com o processo de fotografia nos dá uma idéia da importância da revelação. Assim como um filme ("negativo") de uma fotografia, não conseguiremos ver com nitidez a realidade sem uma revelação. A revelação é um salto para níveis superiores à mente racional. EINSTEIN (apud CLARET, 1986) estava consciente desse salto pois assim ele pensava:
"O mecanismo do descobrimento não é lógico e intelectual - é uma iluminação subtânea, quase um êxtase. Em seguida, é certo, a inteligência analisa e a experiência confirma a intuição. Além disso, há uma conexão com a imaginação" (p.59).
Continuando com o pensamento de EINSTEIN (apud, CLARET, 1986) temos:
"A mente avança até o ponto onde pode chegar; mas depois passa para uma dimensão superior, sem saber como lá chegou. Todas as grandes descobertas realizaram esse salto" (p.60).
Einstein desenvolveu um método de investigação que muito se assemelha com o método de sutilização da sensibilidade. Podemos ver alguns indícios das técnicas de sutilização na seguinte afirmação: "é uma iluminação subtânea, quase um êxtase". Numa carta ao filósofo Maurice Solovine, Einstein descreve esse método particular (apud PAGELS, 1982):
"Einstein descreveu mais tarde o seu próprio método numa carta ao filósofo Maurice Solovine, um amigo dos seus tempos de Berna na repartição de patentes. Este método poderia ser chamado "método postulacional de Einstein".
Na sua carta a Solovine, Einstein incluia um diagrama que ilustra o seu método. O diagrama é:
O cientista parte do mundo da experiência e das experiências. Com base apenas na intuiçào física, ele salta da experiência para a abstração de um postulado absoluto - tal como Einstein se apercebeu de que o princípio de equivalência implicava que a gravidade é geometria. Einstein realizou este salto conceitual muito para além daquilo que qualquer experiência poderia verificar e antes de ter qualquer dado que o apoiasse. Como poderiam existir tais dados? Nenhum físico tinha sequer imaginado que poderia haver uma relação entre gravidade e geometria" (p.67-68).
Poderíamos, então, perguntar se Einstein tivesse permanecido fiel ao pensamento positivista, ele teria conseguido descobrir a teoria da relatividade? A respeito disso, vejamos o que diz PAGELS (1982):
"O positivista insiste em que devemos falar apenas daquilo que podemos conhecer através de operações diretas com a medição. A realidade física é definida por operações empíricas reais, não por fantasias da nossa mente.
No entanto, depois de se ter estabelecido em Berlim, Einstein afastou-se da posição de um estrito positivismo, e isto apenas parcialmente, devido aos argumentos persuasivos oferecidos pelo seu colega Planck. Foi em grande parte o próprio sucesso de Einstein com a teoria da relatividade generalizada e o método de pensamento que utilizou para chegar a ela que o convenceram das limitações do método do positivismo estrito. Se Einstein tivesse permanecido positivista, duvido que ele houvesse alguma vez formulado a sua teoria da relatividade" (p.66-67).
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