Há um debate sobre qualidade artística, talento (uma espécie de sinal de Deus), para que serve o que se escreve e publica? Não é sem razão que se faz desse modo. Muitos manifestaram tais preocupações consigo mesmo. Até recordo de uma texto da Isabel Lustosa em comemoração à Padaria Espiritual, quando ela se referia a pequenos burgueses, nas franjas do comércio e da Fênix Caixeiral. Aquele seres menores do universo hierárquico brasileiro com suas pretensões literárias. De qualquer modo, apesar da régua baixa nesta parte do texto da Isabel, desta mesma Padaria surgiram nomes nacionais (não muitos, nunca são muitos na seletividade publicitária). Na minha geração dos cinco anos que vivi em Fortaleza esta rebeldia cearense em face das Academias, de Letras, apresentou a Padaria como uma alça em que no universo do sou ou não sou, carregou muitos talentos que se desenvolvem no processo.
Afinal o debate não terá uma última palavra e vai muito além, misturando estilos e sentimentos. Aproveito para trazer este texto do blog do Saramago a respeito de um escritor português, em termos do seu estilo, seu anacronismo estético e a memória de todos com a volúpia da modernidade.
José Saramago
A obra romanesca de Aquilino Ribeiro foi o primeiro e talvez o único olhar sem ilusões lançado sobre o mundo rural português, na sua parcela beiroa. Sem ilusões, porém com paixão, se por paixão quisermos entender, como no caso de Aquilino sucedeu, não a exibição sem recato de um enternecimento, não a suave lágrima facilmente enxugável, não as simples complacências do sentir, mas uma certa emoção áspera que preferiu ocultar-se por trás da brusquidão do gesto e da voz. Aquilino não teve continuadores, ainda que não poucos se tenham declarado ou proposto como seus discípulos. Creio que não passou de um equívoco bem intencionado essa pretendida relação discipular, Aquilino é um enorme barroco, solitário e enorme, que irrompeu do chão no meio da álea principal da nossa florida e não raro deliquescente literatura da primeira metade do século. Nisso não foi o único desmancha-prazeres, mas, artisticamente falando, e também pelas virtudes e defeitos da sua própria pessoa, terá sido o mais coerente e perseverante. Não o souberam geralmente compreender os neo-realistas, aturdidos pela exuberância verbal de algum modo arcaizante do Mestre, desorientados pelo comportamento “instintivo” de muitas das suas personagens, tão competentes no bem como no mal, e mais competentes ainda quando se tratava de trocar os sentidos do mal e do bem, numa espécie de jogo conjuntamente jovial e assustador, mas, sobretudo, descaradamente humano. Talvez a obra de Aquilino tenha sido, na história da língua portuguesa, um ponto extremo, um ápice, porventura suspenso, porventura interrompido no seu impulso profundo, mas expectante de novas leituras que voltem a pô-lo em movimento. Surgirão essas leituras novas? Mais exactamente, surgirão os leitores para esse ler novo? Sobreviverá Aquilino, sobreviveremos os que hoje escrevemos à perda da memória, não só colectiva, mas individual, dos portugueses, de cada português, a essa insidiosa e no fundo pacóvia bebedeira de modernice que anda a confundir-nos o sistema circulatório das ideias e a intoxicar de novos enganos os miolos da Lusitânia? O tempo, que tudo sabe, o dirá. Não percebemos que, desleixando a nossa memória própria, esquecendo, por renúncia ou preguiça mental, aquilo que fomos, o vácuo por esse modo gerado será (já o está a ser) ocupado por memórias alheias que passaremos a considerar nossas e que acabaremos por tornar únicas, assim nos convertendo em cúmplices, ao mesmo tempo que vítimas, de uma colonização histórica e cultural sem retorno. Dir-se-á que os mundos real e ficcional de Aquilino morreram. Talvez seja assim, mas esses mundos foram nossos, e essa deveria ser a melhor razão para que continuassem a sê-lo. Ao menos pela leitura.
Afinal o debate não terá uma última palavra e vai muito além, misturando estilos e sentimentos. Aproveito para trazer este texto do blog do Saramago a respeito de um escritor português, em termos do seu estilo, seu anacronismo estético e a memória de todos com a volúpia da modernidade.
José Saramago
A obra romanesca de Aquilino Ribeiro foi o primeiro e talvez o único olhar sem ilusões lançado sobre o mundo rural português, na sua parcela beiroa. Sem ilusões, porém com paixão, se por paixão quisermos entender, como no caso de Aquilino sucedeu, não a exibição sem recato de um enternecimento, não a suave lágrima facilmente enxugável, não as simples complacências do sentir, mas uma certa emoção áspera que preferiu ocultar-se por trás da brusquidão do gesto e da voz. Aquilino não teve continuadores, ainda que não poucos se tenham declarado ou proposto como seus discípulos. Creio que não passou de um equívoco bem intencionado essa pretendida relação discipular, Aquilino é um enorme barroco, solitário e enorme, que irrompeu do chão no meio da álea principal da nossa florida e não raro deliquescente literatura da primeira metade do século. Nisso não foi o único desmancha-prazeres, mas, artisticamente falando, e também pelas virtudes e defeitos da sua própria pessoa, terá sido o mais coerente e perseverante. Não o souberam geralmente compreender os neo-realistas, aturdidos pela exuberância verbal de algum modo arcaizante do Mestre, desorientados pelo comportamento “instintivo” de muitas das suas personagens, tão competentes no bem como no mal, e mais competentes ainda quando se tratava de trocar os sentidos do mal e do bem, numa espécie de jogo conjuntamente jovial e assustador, mas, sobretudo, descaradamente humano. Talvez a obra de Aquilino tenha sido, na história da língua portuguesa, um ponto extremo, um ápice, porventura suspenso, porventura interrompido no seu impulso profundo, mas expectante de novas leituras que voltem a pô-lo em movimento. Surgirão essas leituras novas? Mais exactamente, surgirão os leitores para esse ler novo? Sobreviverá Aquilino, sobreviveremos os que hoje escrevemos à perda da memória, não só colectiva, mas individual, dos portugueses, de cada português, a essa insidiosa e no fundo pacóvia bebedeira de modernice que anda a confundir-nos o sistema circulatório das ideias e a intoxicar de novos enganos os miolos da Lusitânia? O tempo, que tudo sabe, o dirá. Não percebemos que, desleixando a nossa memória própria, esquecendo, por renúncia ou preguiça mental, aquilo que fomos, o vácuo por esse modo gerado será (já o está a ser) ocupado por memórias alheias que passaremos a considerar nossas e que acabaremos por tornar únicas, assim nos convertendo em cúmplices, ao mesmo tempo que vítimas, de uma colonização histórica e cultural sem retorno. Dir-se-á que os mundos real e ficcional de Aquilino morreram. Talvez seja assim, mas esses mundos foram nossos, e essa deveria ser a melhor razão para que continuassem a sê-lo. Ao menos pela leitura.
5 comentários:
Zé do Vale
Você insiste em defender o indefensável usando como mote sempre uma provável querela dos modernos com os antigos. Se a coisa fosse essa seria muito boa. Existem grande autores barrocos que admiro (meu orientador do doutorado é tradutor de Huidobro, Lezama Lima e outros). Embora não seja do fã clube de Saramago reconheço a qualidade de seu estilo e escrita. Vamos e convenhamos o mesmo não posso dizer dos textos que critiquei. O anacronismo seria um dos problemas menores desses textos. Mas uma visão sub-romântica da realidade, não. Insistir nessa tecla é querer tapar o céu com uma peneira. Por que não chegamos a um acordo assim: a produção que critiquei é caseira, doméstica e não tem pretensões artísticas mas sentimentais.Ok, qual é o problema?
Mas a vaidade não permite que se veja o óbvio. Me sinto como o menininho que aponta "o rei está nu! E como tenho a pretensão de ser um humorista, um ironista , estou apenas cumprindo a minha humilde missão.
Maurício,
Qual o problema? Afinal tem sustentação num debate ou não tem. Se resume a apenas gostei ou não gostei. Veja o que você escreveu em post recente: "Quando critiquei certos poemas publicados no blog foi à luz do que o campo artístico considera superado e, mesmo dentro de uma estética superada, de alguma forma mal realizado". Se a superação não for uma questão de tempo não entendo o que você escreve e aí o problema é só meu mesmo. Mas saberei absorvê-lo. Apenas me convença mais do que fez.
Aliás existe uma questão de fundo que finalmente a "ficha começa a cair". Talvez seja mesmo canônica. E quando esta passa a se inserir como tal.
Talvez a simbologia do "Cult" tenha despertado alguma pretensão, pode ser um objetivo que nunca se atinja, mas o certo é que os "garotos" que respiram, bebem água e se alimentam no Crato inventaram e chamaram todos para caminhar. Com o "Cult" por título, mas cada um com suas pernas. O cânone do Cult se aplica ao estilo da crítica.
Agora uma abordagem sobre a questão pessoal na sua crítica. Fiquei mais de quarenta dias sem visitar os blogs da região e quando retornei, ali por volta do carnaval, havia uma ácida troca de comentários, envolvendo você e outras pessoas. Claro que sendo citado por você entrei no debate e daí ficou-me a noção de que efetivamente você apontava os defeitos das pessoas (intelectuais bem dizendo) e não percebia os próprios. Maurício eu digo a você sem medo de errar e não vou generalizar, você tem muita vaidade, especialmente a acadêmica e isso foi extensivamente demonstrada numa série de postagens e de comentários. Por isso acho uma contradição a sua excessiva preoucupação com a vaidade dos outros. Mas isso é tudo o que tem de pessoal e não é muito.
Muitos que aqui debatem aceitam o teu conteúdo técnico e intelectual como norte para eles. Ou melhor dizendo, aceitam a validade da tua crítica posto que baseada em bons fundamentos teóricos. Não se trata de um erro ou de uma acerto, mas de uma aceitação da qualidade do teu pulso. Agora, só para lembrar um passado recente, não se trata da formação de um lado ou de um "harém" como fui ironizado por você e ecoado pelo Dihelson. Isso sem contar outras conclusões a que chegastes sem que precise explicitar.
Agora que fique marcado entre todos que enquanto estiver com vocês não deixarei de comentar o que achar por bem comentar. Não deixarei de elogiar aquilo que gostar. Não vou me interessar por normas pois gosto de "Lindomar Castilho" e digo que gosto. Não vou deixar de debater toda vez que a meu critério, errado ou não, perceber que existe qualquer tentativa de censura, canônica em termos de arte ou não. É a questão fundamental: primeiro as pessoas e depois suas consequências. Já que a possível crítica será das suas "consequências".
Quando postei este texto do Saramago foi para dizer que defendo a complexidade da arte (e da cultura) e suas muitas manifestações possíveis. A única régua possível não é a régua da qualidade do estilo e escrita até por que bem sabes esta também não é atemporal e nem desprovida de territorialidade.
Maurício Tavares se você insiste em dizer que insisto, vou lhe apresentar um personagem que insistes praticar. Um fronstispício de ácido humor e ironias, desprezo pelo que chama burrice com arrogância; qualificativos sobre os outros (desde que escrevam no Cariricult), menosprezar o que não gosta. Quando não assumes o personagem aí percebemos que ele é uma representação. Como aqueles programas de humor um personagem que tem uma frase de efeito("as pessoas fazem coisas ruins e ainda acham ruim quando não gosto"). Um pouco parecido com um tipo criado pelo Fausto Wolf para o Pasquim (Nataniel Jebão) para ironizar as colunas sociais: com um cachimbo na boca, um whisky na mão, um smoking com flor no bolso. Lembra a afetação do Mister Eco no jurássico programa do Flávio Cavalcanti criticando os erros nas letras do Aquarela do Brasil de Ary Barroso: este coqueiro que dá côco/oi, onde amarro a minha rede.....
Não, Zé, você não entendeu o que eu quis dizer. Eu não sou canônico. Mas é preciso entender o cânon para transgredí-lo ou reafirmá-lo. O que não é o caso. Os textos que critiquei são ruins por qualquer critério de valor que não o afetivo. Às vezes as rimas são pobres, às vezes as metáforas são gastas. Mas você INSISTE em defendê-los. Problema seu. E ao contrário de Mister Eco acho "coqueiro que dá côco" uma boa letra de canção popular. Você tenta me caricaturar mas não sou tão facilmente caricaturável. Talvez menos que você. Que é o mestre zen, o homem acima do bem e do mal.O homem que que dar a palavra final sobre tudo. Tem personagens humorísticos com esse perfil mas eu não vou me dar ao trabalho de lembrar. Eu não faço tipos. Como já lhe disse uso a ironia como um método. O humor não é um ponto de vista, é uma visão de mundo. E como bem disse Zé Flávio se o blog já é cheio de bom-mocismo e de boas mocinhas por que não posso exercitar um pouco do meu mau-mocismo. Embora você não perceba esse exercício também é feito com muito bom humor.
"Ô Maurício deixa de ser besta. Zen uma porra, você me esculhamba o tempo todo e quer que eu tenha saco de filó para aguentar estes chutes de humor teu?" Ficaria melhor assim? Acho que nem para mim e nem para você. Se aparento Zen e respeitoso (pero no muncho) é que não adianta expor minha raiva e meus sofrimentos para outros que em carga também os tem. É um estilo, que no entanto não esconde a minha própria violência. Eu acho bom demais ter a palavra final. E mais ainda quando alguém tira o ponto e põe uma vírgula. Para quem gosta tanto de palavras finais, uma vírgula que estique mais ainda é tudo que precisa.
Além do mais deixe de besteira pois eu também gosto do que você escreve, além de gostar da Claude, da Socorro, do Domingos, do Chagas, do Carlos e do Bernardo. Tanto gosto que talvez seja um dos membros deste blog com quem mais tempo fica de papo com você. Já respondi a inúmeros comentários teus e fiz alguns post para dialogar.
Aliás somos, ambos,uns belos desocupados, só nós mesmos conseguimos ler nossos catataus.
!
Postar um comentário