TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 18 de agosto de 2009

antes que perguntem se morri, digo: não. estou poraí, escrevendo, tentando dar forma a parte disso que hora repasso.

Madalena olhou pros pés do homem que estava em sua frente. Depois foi subindo os olhos. Até que seus olhos encontraram a mão cabeluda que estava parada. Acima da cabeça do homem. Ele devia estar falando alguma coisa. Mas ela não ouviu. Ou não prestou atenção. Ela sabia que aquela mão peluda vinha em direção a sua cara. Ela também sabia que poderia desviar da pancada. Ou correr. Mas ela preferiu ficar. Olhando. A mão desceu como se fosse em câmera lenta. Os dedos abertos. Obscenos. Ela sentiu a dor de cada dedo. Um deles acertou seu nariz. O outro, abriu uma brecha em sua boca. Ela lambeu o sangue. E olhou bem fundo nos olhos do homem da mão peluda. Chorar? Não. Madalena não chorou. Depois pensou que talvez não tenha doído tanto. Ou que seu olhar causaria mais dano. Mais medo. A mão peluda baixou devagar. O homem olhou pros lados, como se estivesse procurando alguma coisa. Se estava, não encontrou. Passou a mão peluda na cabeça, abriu a porta, deixou-a aberta e saiu. Descendo a ladeira da pequena rua onde ficava a pequena casa de madalena. Madalena acompanhou as costas do homem até que ele sumiu, lá embaixo. Depois ela ouviu aquele choro enjoado. Parecia um bicho que não tinha comido ainda, ou que tinha sido meio atropelado. A velha segurava um pano sujo embolado nas mãos. Tinha a cara lambuzada. Madalena procurava na memória algo que identificasse aquela velha. Depois de um tempo ela simulou um riso. Era lógico: aquela coisa que chorava encostada na mesa era sua mãe. Procurou o significado dessa palavra: mãe. Dentro dela não encontrou nada. Mas sabia o que era. Era da barriga da mãe que a gente saía pro mundo. Pra ela bastava. Olhou pra mãe como olhou para o homem da mão peluda. A velha era fraca, não agüentava a pressão: - o que é? Ta me ameaçando? Vai me bater, me matar? – madalena passou devagar, bem do lado da velha. Ela se encolheu mais ainda. Afastou a cortina de plástico do banheiro e olhou seu rosto no caco de espelho pendurado em cima da pia. Tinha um dente mole. A mão peluda era pesada. O nariz ainda sangrava um pouco. Lavou. Amarrou o cabelo. Pegou a pequena mochila e saiu pela porta, ainda aberta. Não olhou pra mãe. Mas sentia: ela estava no mesmo lugar. Morrendo de medo. Madalena gostava de descer a ladeira. Desde bem pequena ela gostava de descer aquela ladeira. O ruim era subir. Em tudo. O ruim é sempre subir. Apalpou o bolso da pequena mochila e apertou com carinho o canivete de mola. No bolso, nem um centavo. Mas isso se resolvia. Mão peluda tem algum dinheiro. Ele sempre tem. Olhou pro céu só pra confirmar, mas sabia que era o fim da tarde. Dava tempo de passar na biblioteca. O livro de medicina legal diria qual o melhor corte. A posição. A possibilidade de morte rápida ou, bem lenta. Madalena ouvia uma música na cabeça. Música estranha. Ela tinha certeza: era só na sua cabeça. Como uma tatuagem. Uma tatuagem de som. Às vezes a música a irritava. Agora não. A música na sua cabeça era a trilha sonora perfeita de uma tarde perfeita. Vai dar tempo de descer até o rio. Olhar as primeiras luzes da cidade se acenderem. É sempre muito bonito. Tudo é muito bonito com luz. Até gente morta fica bonita quando as velas estão acesas. Lá estão os garotos. Eles não chegam perto. Tem medo. Desde que madalena cortou a orelha do loirinho eles não chegam perto. Ela lembra. O loirinho ficava salivando, dizendo: - vou te comer! Vou te comer! – ele não viu o canivete. Ele segurava com força seus peitos pequenos. Ela não ligava. Ela queria uma posição boa pra cortar. Conseguiu segurar parte da sua orelha e desceu com mão segura o canivete. Ele berrou como um menininho. Saiu de cima dela. Correu. Ela continuou deitada. Ofegando. Calma. Em uma das mãos o canivete ensangüentado. Na outra, a orelha do loirinho. Ninguém mais chamou ela de madalena. Nem de nada. Só quando ela não estava perto, aí diziam dela: - lá vem a mad da faca! Madi. Alguém um dia chamou assim, bonito. Madi. Madi. Mas faz muito tempo. Ou então, até nem houve.

Capítulo 1

Bola sete. O bar mais sujo da orla. Um pequeno balcão, duas mesas de sinuca, um ventilador rodando em velocidade nenhuma. Um garçom tão sujo quanto o bar. Era na porta desse bar que madalena esperava pacientemente. Tinha conseguido um cigarro, que agora queimava tranqüilo em sua mão. Parecia que ninguém a via ali. Parada. Encostada no muro. Era um bar de homens. Era comum que mulheres – de qualquer idade – ficassem ali. Esperando. Dois homens saem do bar. Um deles é o mão peluda. Madalena se encosta mais na parede. Está chegando a hora.
- vai trabalhar amanhã?
- sei não cara. To avulso. Mas vou pro ponto. Se aparecer alguma coisa, encaro.
- ta sem grana?
- ainda não. Recebi o seguro desemprego. Vou deixar uma parte com a mãe da louca, mas ainda vou ficar com algum.
- então ta limpo. A gente se vê.
Bom andar de tênis. Não faz barulho. Mão peluda anda devagar, bebeu. Madalena segue com calma. Ela viu no livro. Ela sabia onde tinha que cortar. Só precisava que mão peluda colaborasse, e tivesse medo no primeiro corte. Na próxima esquina. Perto da árvore velha do mercado. Ele vai parar pra mijar. Eles sempre param. Ele parou. Madalena apressou o passo e se postou na sua frente.
- o que é porra!
- o que você quer? Quer levar outra porrada? Ou quer pica? É isso que você quer?
Mão peluda balançava seu pau mole e ria pra madalena. Ela se aproximou, com um riso zombeteiro. Ele não se afastou. Bom. O canivete cortou seco. A barriga dele parecia margarina. Nem precisou força. Ele ia gritar, seus olhos diziam isso. Madalena riu, e colocou o dedo na boca, como as enfermeiras nos cartazes. Ele obedeceu. E caiu de joelhos em frente a madalena. Agora sim, na altura que ela planejou.
- porque porra? O que foi que eu fiz? Eu só te bato porque você não fala. Me desculpa porra! Chama alguém pra me ajudar. Porra! Eu vou morrer sua putinha muda do caralho!
Ela sacudiu a cabeça, assentindo. Depois levantou a mão, como ele tinha feito com ela mais cedo. E bateu. Uma. Duas. Dez vezes. As lágrimas nos olhos dele davam um prazer que ela ainda não conhecia. A faca. Na outra mão. Ela tinha esquecido da faca. Do livro. Do corte. Mudou a posição, ficou meio de lado, encostou a lâmina no pescoço de mão peluda, perto da orelha. Um corte só. Limpo. O esguicho de sangue não a assustou. Mas era muito mais sangue que da orelha do loirinho. Lambeu a lâmina. O gosto é igual. E fede igual. Precisa terminar. Mão peluda ainda mexe as pernas. Fica pesado. Ela olha primeiro os bolsos. Pega a carteira. Depois tem a idéia de tirar as roupas de mão peluda. Queria ver um homem nu. Viu. Novidade nenhuma. Tentou separar os pedaços de mão peluda. Como a mãe fazia com as galinhas. Olhou o relógio, não ia dar tempo. Arrancou as mãos. Era um presente. Pra mãe.

Um comentário:

Carlos Rafael Dias disse...

Lupeu é um escritor romântico, apesar de mandar o romantismo às favas.

Lupeu é um dos últimos beatniks do planeta. Sei que existem outros, mas, infelizmente, não os conheço (Talvez o Gustavo Rios, talvez um outro além da margem do rio...)

Lupeu não pensa sobre ou enquanto escreve. Sua escrita é automática. Ela jorra dos dedos e prinpalmente do cigarro que fuma e da dose que traga.

Cabe a nós pensarmos sobre...

Lupeu não é um escritor de Blog. Ele nos concede esssa exceção. Ele é escritor da vida, dos bares, da noite, das manhã de ressaca, dos palcos, dos inferninhos, da estrada, dos porres, da lucidez permanente, da loucura assumida, da responsa de quem tem culhas e sabe usá-los até na irresponsa.

Lupeu é um poeta de fanzine, um cantor de banda de garagem, um escritor que fode tudo que venha com maneirismo e boas maneiras.

Lupeu é brother...