TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

De vivos e mortos


Vez por outra me deparo com alguém muito próximo declarando simpatia pelo espiritismo e até contando de experiências sensoriais que viveu no campo da doutrina sistematizada por Allan Kardec e popularizada no Brasil pelo médium Chico Xavier. A última foi meu sobrinho de nove anos que chegou com estórias de reencarnação e vida eterna. Até imaginei que estivesse falando de algum novo game do seu sofisticado play-station. Mas não era não. Era sobre alma, mediunidade e vida eterna!
Aos nove anos – no meu tempo!- a gente tinha um medo lascado de alma, papa-figo e tudo quanto era doido que vagasse pelas ruas da cidade, porque os doidos também estavam possuídos por espíritos ou demônios. Lembro-me ainda que um programa diário e noturno de uma rádio local dramatizava tudo que era estória de assombração que estimulava nosso temor e atormentava ainda mais o nosso sono infantil, o que nos fazia rezar muitas vezes o ”santo anjo do senhor, meu zeloso guardador...” até que adormecesse.
Hoje, os adolescentes transformaram a morte numa brincadeira para ser curtida nas salas de cinema com a hilária família Adams ou com os cruéis Fred Kruger e Jason que sempre ressuscitam na próxima estréia. Não estão nem aí para a mortalidade do corpo ou a imortalidade da alma. Vivem a vida pelo instante e não se angustiam tanto à espera do futuro que é incerto e menos ainda com uma vida pós-morte. Os pais entram em pânico e sofrem muito com esta “irresponsabilidade”.
Na curva declinante da vida, em que a gente se encontra, os nossos sentimentos para com a morte são outros. Temos certeza da mortalidade do corpo que já envelhece a olhos vistos e apostamos todas as fichas na imortalidade da alma ou na ressurreição dos mortos, uma esperança da nossa fé cristã. Então, atraem-nos até os delírios e fantasias que nos ofereçam alguma pista ou caminho que faça esta ligação com o outro lado da vida.
É de sempre o conflito do ser humano no que diz respeito à sua finitude. Das civilizações mais antigas até os nossos dias nenhuma resposta satisfatória nos foi dada aos nossos questionamentos sobre o que vem depois. A própria vida hoje é sugerida como uma maravilhosa ilusão - vide a série de filmes ”Matrix” - ou uma abstração do homem e Deus sua mais perfeita criação.
Quando faleceu o meu pai, li para a minha mãe alguns trechos do “Livro dos Espíritos”, de Allan Kardek, e ela ficou encantada com os testemunhos dados pelos espíritos felizes. Até brincou: “- Se for assim é muito bom. Seu pai, por esta hora deve estar lá em cima conversando com Dona Batistina (mãe dele) e Seu Ranulfo (pai dele)!”. A leitura amenizou um pouco a dor de nossa perda.
De outra vez, mostrei pra minha mãe o Google Earth e fiz uma viagem virtual com ela de Fortaleza (onde estava) até o Araripe (onde nasceu). Ela ficou impressionada com a tecnologia e me disse em tom de brincadeira: “-Ainda vão inventar um meio (telefone?) pra gente se comunicar com as almas!" Rimos juntos.
Meu sobrinho, este a que me referi no começo deste texto, é Rafael, e sempre foi muito carinhoso com a minha mãe (sua bisavó), falecida recentemente. Conversavam muito como se fossem dois adultos ou duas crianças. A atenção dele para com ela e suas afinidades sempre nos impressionaram. E foi ele que me falou que a reencarnação dela ainda não havia ocorrido e expressou-se com tanta naturalidade que comecei a repensar alguns (pré)conceitos sobre o espiritismo.


Diálogo possível no futuro:
- (da Terra) Alô, Alô! É do Céu?
- (do outro lado) Ai! Ai! Ui! Úi!
- (da Terra) Vixe Maria, a ligação caiu no purgatório!

Avanço tecnológico em Centro Espírita:
- “Aqui nós não baixamos espíritos. Fazemos Downloads!”

2 comentários:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Salatiel é um artista pleno. Aliás tem um distanciamento brechtiano até quando trata do mais velho e significativo conteúdo da vida: a morte. Aliás, me justifico melhor, pelo menos as preocupações de quem já tinha tempo suficiente para não apenas pensar na sobrevivência. Como dizem bem os historiadores: a filosofia é própria da sociedade que acumula, podendo gerar filhos ociosos em termos da árdua tarefa rural. Mas aí o Salatiel me lembrará: o gênio Patativa? Era um homem com dois pés entre o seu mundo rural e a vida na cidade. Mas voltando à questão: o Salatiel não cai na fácil crença, contempla o assunto e ainda brinca. Texto bom de ler.

Carlos Rafael Dias disse...

"O que sei da morte?
É nunca parar de morrê-la

E da vida?
É jamais deixar de vivê-la"

By João Nicodemos