TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 14 de agosto de 2010

O quarto segredo de Fátima

Florípio sabia-se retrô, meio ultrapassado: como um urinol, uma espingarda soca-soca, um tabaqueiro. Mas que jeito ? Até que tentou se atualizar um pouco, mas desistiu. Homem agora é um tal de emo ou de homo; moça é apenas um tipo de leite condensado; veado é promoter! Desisto, tô fora, não dá prá mim ! Solteirão convicto, colecionava uma dezena de namoradas, escolhidas a dedo, pela variedade e não pela beleza ou pelo dinheiro. Caixeiro viajante aposentado, Florípio desenvolvera uma lábia de derrubar Boing 747. Língua de veludo, arrodeava a pretendida com técnicas de um mestre-salas, cobria-a de mimos, enviava flores e torpedos; sabia como poucos lamber a alma feminina e deixá-la em ponto de degustação. Daí, certamente, terá vindo sua fama de limpa-trilho, de tsunami, de terra-de-cemitério. Ultimamente , mais escondido do que puta de cardeal, envolvera-se com a esposa de um militar aposentado. Chamava-se Fátima. Esbarrara com ela em um supermercado e, enquanto perguntava sobre a seção de floricultura, ela pareceu interessada diante daquele romantismo obsoleto . Conversa vai, conversa vem e rolou um clima entre uma e outra bromélia. Florípio percebeu que enveredava por um esporte radical: o marido era brabo como um gato acuado e não aparentava ter cabeça apropriada para adornar-se de chifres. Mas clima é clima e o risco mostrou-se uma adrenalina a mais na relação. Nosso D. Juan nem atinou na proximidade ortográfica entre sêmen e sangue. E, com tanta boca de maçarico existente neste mundo de meu Deus, qual é o segredo que se agüenta incólume? Nem o de Fátima!
Há alguns dias o Cel Mascarenhas, o sócio de Florípio, marcou viagem para capital. Até hoje não se sabe bem se já desconfiava de alguma coisa e armou o alçapão ou se o flagra teria sido mero acaso. O certo é que nosso Caixeiro viajante estava à noite, deitado na cama com a namorada, de frozô, quando ouviu , apavorado, fortes pancadas na porta. A mulher, atarantada, percebeu, claramente, que a voz era nada mais, nada menos que a do marido. Nem teve tempo de avisar do perigo. A casa , de sobrado, não tinha muitas rotas de fuga e o quarto era no primeiro andar. E medo é bicho diminuidor de distâncias e encurtador de alturas. Florípio pensou com as pernas. Nu, pegou as roupas e os sapatos e saltou pela janela, sem contar conversa. D. Fátima maquiou, rapidamente, a cena do crime, antes de abrir a porta para o marido desconfiado que invadiu a casa procurando por uma caça possível, como um cão perdigueiro.
Por sua vez, Florípio, ao bater no chão, pareceu um jacu baleado, saiu numa na carreira desabalada, como se sentisse o bafo de Mascarenhas no cangote. Era noite alta e, para sua felicidade, as ruas estavam vazias. Quando dobrou a primeira esquina, no entanto, notou que a sorte o havia abandonado. Entrou justamente no meio da Procissão de Senhor Morto. Cidade escura, ainda sem energia, apenas as velas, nas mãos das beatas, emitiam uma luz fosca e bruxuleante.Florípio meteu-se no meio da turba e que jeito ? Fingiu-se de fiel, baixou a cabeça e saiu andando lentamente, balbuciando aquilo que se podia imaginar fosse uma oração. Passados alguns instantes, um velho que andava a seu lado, acompanhando o séquito, percebeu, por fim, a nudez do romeiro. Estupefato, perguntou que diabos era aquilo. Florípio, então, usando artes da profissão , desdobrou: estava pagando uma promessa. Disse que prometera aquela penitência, em caso de ter seu pleito atendido. O velho engoliu a explicação meio a contragosto, como se tratasse de farinha de mucunã. Mais alguns passos e, percebendo várias marcas vermelhas no peito e no rosto , parecendo baton, o velho continuou o inquérito: que diabos de vermelhão pelo corpo é esse, meu senhor? Florípio, então, falou que era penitente e que antes de vir à procissão, havia passado por um ritual de auto-flagelamento. O velho engoliu este outro bocado, a seco, com cara de quem vai se entalar. Confuso, fitou a nudez do vizinho , mais uma vez, e interrogou:
---- Meu amigo, se mal pergunto, que diabos de graça importante foi essa que você alcançou ?
Florípio, sem entregar os pontos, respondeu:
--- Meu amigo, vi nesses dias, o alagamento daquelas cidades de Pernambuco pelo rio Una. O povo passando fome, sem casa, sem roupa, no meio da chuva. Até os cachorros, carneiros, gatos, no meio da rua, sofrendo. Peguei-me então com São Expedito, aquele das causas impossíveis e de repente as coisas começaram a se resolver, graças a Deus. Tô aqui para pagar a minha promessa.
O velho, fitou Florípio de cima abaixo e fechou questão:
--- É verdade, camarada. O santo é milagroso. O povo todo já tá de casa nova e comida farta. Os animais abrigados. Tô vendo que até o seu pinto, depois do alagamento, já ganhou uma camisinha...

J. Flávio Vieira

3 comentários:

joão alberto lupin disse...

zé flávio,
comendo a mulher do "militar", seu florípio vingou a nós todos da quartelada de 1964.
grande abraço.

jflavio disse...

Pois é, caro Lupin, terminou fazendo um bem à humanidade, mesmo por vias tortas. Abraço

Unknown disse...

Rapaz, essa alma só podia querer reza!!!!