O levante de 1935 foi pretexto para uma feroz perseguição policial contra democratas e comunistas. Graciliano Ramos, que ficou quase um ano preso somente pela suspeita de apoiar a ANL, descreveu a experiência em Memórias do Cárcere.
Depois dos levantes da ANL, em novembro de 1935, teve início uma onda repressiva intensa contra democratas, comunistas, intelectuais progressistas e todos aqueles que a polícia política considerasse inimigos do regime. O escritor Graciliano Ramos, que a publicação, naqueles anos, dos romances Caetés e São Bernardo, já tornara uma celebridade, foi preso em 3 de março de 1936, sem acusação formal, interrogatório ou processo mas suspeito de envolvimento com a Aliança Nacional Libertadora. “O levante do 3º Regimento e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana”, disse em Memórias do Cárcere, descrevendo o pesado clima da época e referindo-se diretamente ao nazismo e ao fascismo admirados por autoridades do governo brasileiro. A suspeita de envolvimento com a ANL foi suficiente para Graciliano ficar na cadeia, primeiro em Maceió e depois no Rio de Janeiro, até 13 de janeiro de 1937, na Ilha Grande, onde presos políticos eram alojados juntamente com criminosos comuns.
Graciliano deixou, mais tarde, um dos mais contundentes e humanos relatos sobre o cotidiano nas prisões do Estado Novo, Memórias do Cárcere que, em 1984, foi transformado por Nelson Pereira dos Santos num filme de contundente crítica às ditaduras.
Em 1945, quando o Partido Comunista do Brasil voltou à atividade legal, no final do Estado Novo, Graciliano formalizou sua filiação e teve intensa atividade na organização dos escritores progressistas e avançados. Foi naquela época que escreveu Memórias do Cárcere, cujos primeiros manuscritos datam de janeiro de 1946 (o livro foi publicado sete anos mais tarde, em 1953).
No final da década de 1970, sua filha Clara Ramos, trabalhando em manuscritos deixados pelo Velho Graça, decidiu transformá-los no livro intitulado Cadeia, do qual o Vermelho publica o texto a seguir.
José Carlos Ruy, da Redação do Vermelho
Colônia Correcional: Ilha Grande
Graciliano Ramos
Tinham conseguido armar na cama vizinha um difícil mosquiteiro. Na manhã seguinte vi sentado nela um sujeito maduro, atraente, óculos grossos de miopia, a roupa de casimira pelo avesso.
- Bom dia, atirou-me risonho e lento.
Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.
- O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?
- Não senhor – respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias. Sou admirador de [Luís Carlos] Prestes.
Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora – cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça baixa e sem cabelos. Pobre de seu Mota. A situação dele era com certeza a do Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido no cárcere dos sargentos no quartel de Recife, depois na prisão de Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego, a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero mudo, contido. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:
- Por que é que eu estou preso? Hem? Diga.
Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado. Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados no rosto murcho brilhavam muito vivos, os fartos anéis da cabeleira negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não era apenas física; o espírito devia estar em declínio também para ele me vir fazer tal pergunta.
- Que é que você quer que eu diga? Sei lá! Nem sei porque estou preso.
O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto e censura. Tomou fôlego e, de supetão:
- Você? Ora essa! Está preso porque é comunista. Sempre foi.
Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à polícia.
- Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para estar aqui? Hem? Explique.
Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo ainda mais. Coitado. Não percebia a exígua significação das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça. Por quê? Responsabilizava-me:
- Diga. Por que me mandaram para aqui? Diga ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês, nunca li nada disso. Explique.
A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável. Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso aberto de Leal, as anedotas de caixeiro viajante sem graça, narradas muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa no interior. Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação, e isso me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa, capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los, distraí-los, receamos contagiar-nos, finar naqueles tormentos. Buscamos a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, seria agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.
- Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul marinho. Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí na rua. Pois veja que azar, na Lapa um sujeito do meu tope começou a espiar demais para mim e não deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou: “- Moço, me desculpa. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?” “- Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil reis a um adelo da rua da Constituição, número tal.” “- Pois moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.” Aí eu me ofendi e propus: “- O senhor quer ir comigo falar com o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou: “- Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.” Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher: “Leva este diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não deve usar as coisas que rouba.
A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura tranquila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniquidade, pois não se envolvera em política, mantinha na prisão melhor humor. “- Bom dia”. Estava ali junto, emoldurado pelo mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava, e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos, e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito, coronel e analfabeto, não entendia de verbas.
- Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação. Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna. Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou um tostão.
O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante, mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu:
- O senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro?
- Sem dúvida, seu Mota. Ora essa!
O ex-secretário da prefeitura de Corumbá teve um longo suspiro:
- Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me persegue na vida.
Seu Mota concluiu, exaltando-se:
- Eu era muito novo. E muito burro.
- Bom dia, atirou-me risonho e lento.
Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.
- O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?
- Não senhor – respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias. Sou admirador de [Luís Carlos] Prestes.
Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora – cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça baixa e sem cabelos. Pobre de seu Mota. A situação dele era com certeza a do Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido no cárcere dos sargentos no quartel de Recife, depois na prisão de Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego, a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero mudo, contido. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:
- Por que é que eu estou preso? Hem? Diga.
Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado. Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados no rosto murcho brilhavam muito vivos, os fartos anéis da cabeleira negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não era apenas física; o espírito devia estar em declínio também para ele me vir fazer tal pergunta.
- Que é que você quer que eu diga? Sei lá! Nem sei porque estou preso.
O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto e censura. Tomou fôlego e, de supetão:
- Você? Ora essa! Está preso porque é comunista. Sempre foi.
Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à polícia.
- Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para estar aqui? Hem? Explique.
Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo ainda mais. Coitado. Não percebia a exígua significação das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça. Por quê? Responsabilizava-me:
- Diga. Por que me mandaram para aqui? Diga ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês, nunca li nada disso. Explique.
A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável. Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso aberto de Leal, as anedotas de caixeiro viajante sem graça, narradas muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa no interior. Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação, e isso me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa, capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los, distraí-los, receamos contagiar-nos, finar naqueles tormentos. Buscamos a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, seria agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.
- Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul marinho. Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí na rua. Pois veja que azar, na Lapa um sujeito do meu tope começou a espiar demais para mim e não deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou: “- Moço, me desculpa. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?” “- Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil reis a um adelo da rua da Constituição, número tal.” “- Pois moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.” Aí eu me ofendi e propus: “- O senhor quer ir comigo falar com o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou: “- Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.” Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher: “Leva este diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não deve usar as coisas que rouba.
A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura tranquila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniquidade, pois não se envolvera em política, mantinha na prisão melhor humor. “- Bom dia”. Estava ali junto, emoldurado pelo mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava, e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos, e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito, coronel e analfabeto, não entendia de verbas.
- Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação. Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna. Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou um tostão.
O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante, mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu:
- O senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro?
- Sem dúvida, seu Mota. Ora essa!
O ex-secretário da prefeitura de Corumbá teve um longo suspiro:
- Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me persegue na vida.
Seu Mota concluiu, exaltando-se:
- Eu era muito novo. E muito burro.
Fonte: http://www.vermelho.org.br/
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