TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Bigode de Hitler

Matozinho desfizera bravamente aquela famosa máxima brechtiniana : “Triste de um povo que precisa de heróis”. A vila alimentava quase que religiosamente sua história. Como temperá-la sem a água benta dos seus beatos, o sangue dos seus mártires, o riso dos seus sátiros, a pólvora dos seus heróis ? No que tange às façanhas militares, havia um valente soldado que imantava o orgulho de todos : Capitão Candóia ! Hoje o seu busto contempla a todos com olhos severos , defronte da prefeitura municipal. Como um guardião derradeiro da vila, da pompeiana Matozinho.
Os anais da história oficial da cidade não mentiam. Candóia fora um herói, servindo ao Exército Brasileiro na II Guerra Mundial. Voltara do conflito carregado de louros e, mesmo depois da vitória final dos aliados, continuara sua missão militar, como caçador de nazistas, mundo afora, uma espécie de Simon Wiesenthal tupiniquim. Este era, basicamente, o resumo das atividades bélicas do nosso Candóia, presente nos alfarrábios oficiais de Matozinho. Fora esta, também, a versão que permanecera na memória do povo, até porque os fatos acontecidos já ultrapassavam a longínqua distância de quase seis décadas e testemunhas de outras versões já tinham passado dessa para pior. Restara apenas o velho Sinfrônio Arnaud que teimava em não fraquejar, parecia uma braúna com mais de noventa anos. Às vezes, já tresvariava, como diziam os familiares, mas aparentemente ainda mantinha o vigor dos antigos anos. Pois bem, aqui vai a versão da épica vida de Chiquim de Candóia, o herói matozense, segundo a língua afiada do velho Sinfrônio.
Em 1943, o Brasil recém entrado na II Guerra, chegaram militares em Matozinho com fins de alistar soldados para defender a pátria do perigo nazi-fascista. Vários voluntários se apresentaram à comissão, recebidos com fogos e vivas. O Sargento Rufino , vindo da capital como chefe da missão, buscou escolher um bom destacamento. Passadas as primeiras revistas, sentiu-se desolado. Os homens que apareceram eram magricelas, baixinhos, e despombalizados, totalmente inaptos ao serviço militar. Para justificar ao menos sua ida àquelas plagas longínquas, Rufino, meio frustrado, escolheu apenas um, mesmo assim com a pulga atrás da orelha: Chiquim de Candóia ! Era meio parrudo, mas entroncado como tamborete de samba.
A partir desse momento, Chiquim foi imediatamente alçado à categoria dos heróis. Festas, discursos inflamados, presentes e assédio de moças donzelas atacaram Candóia por mais de dez dias, enquanto arrumava os teréns para sentar praça na capital. Partiu ao som da Banda de Música da Vila entoando Cisne Branco e do choro convulsivo de familiares e de mocinhas saudosas. Ao chegar à Capital dirigiu-se , imediatamente, para o quartel indicado, o glorioso 14 RI, onde, ao apresentar-se com carta de Rufino, foi novamente submetido a exame militar e médico. A conclusão dada por um oficial carrancudo e de poucas palavras lhe pareceu absurda:
--- Pode voltar prá casa, mocinho, você , magro que só assovio de sagüi , baixinho e de perna cambota, não serve aqui nem prá bucha de canhão !
Candóia saiu dali totalmente arrasado. Sentou-se na praça defronte ao quartell ( já que não conseguira sentar praça lá dentro ) e, num átimo, resolveu:
--- Não volto prá Matozinho de jeito nenhum ! Saí nos braços do povo, não posso voltar assim derrotado, sem ter disparado nenhum tiro de soca-soca nem baladeira !
Saiu perambulando até o cais do porto e foi ficando por lá. Começou a fazer bicos como estivador, arranjou um quartinho ali perto e foi se estabelecendo, por lá. Periodicamente desembarcavam e embarcavam tropas e Candóia ia se atualizando sobre o andar da guerra. Um dia um soldado vindo da Itália, lhe agraciou com uma farda velha. Todo carnaval Chiquim usava-a como fantasia, acrescia no figurino um longo bigode de palhaço que colava no lábio superior e saía, corso afora, com cara de general. Um belo dia soube da notícia : a guerra tinha acabado, os aliados por fim venceram e o III Reich fora esmagado.
Passados vários meses, enquanto carregava um navio cargueiro com frutas destinadas aos gringos,na Europa, bateu-lhe uma saudade danada de casa. Deve ter sido o cheiro inconfundível da manga rosa que se mesclava com as mais ternas fragrâncias da sua infância. Naquele mesmo dia, resolveu voltar. Já haviam se passado três anos e nunca dera uma notícia sequer, os familiares certamente, já deviam tê-lo como abatido em campo de batalha. Vestiu a farda velha , pegou a velha sopa de Duzentos na Rodoviária e partiu ! Nem é preciso dizer o alvoroço que o retorno do filho pródigo causou em Matozinho. A notícia correu de boca em boca na velocidade do vento: o herói estava de volta ! Durante mais de uma semana Capitão Chiquim de Candóia não parou. De boteco em boteco, de casa em casa ia desfilando incontáveis histórias das terras estrangeiras, da sua braveza e destemor no Campo de Batalha; das mortes incontáveis que teve que causar, para não ser trucidado pelo inimigo feroz.
Uma semana depois da chegada, Candóia foi homenageado em reunião solene da Câmara Municipal com a presença ilustre do Prefeito Pedro Cangati. Depois de inúmeros discursos laudatórios à braveza do herói matozense, o presidente apresentou decreto que criava a Medalha de Honra Capitão Candóia, a ser ofertada periodicamente “a matozenses que tenham defendido sua terra com o destemor típico dos heróis, colocando os interesses do município acima de quaisquer aspirações pessoais, inclusive da própria sobrevivência física”. Após o discurso de praxe, o Prefeito Pedro Cangati, solicitou que o Capitão contasse os terríveis momentos por que passou em terras estrangeiras:
--- Caro Chiquim, qual foi para você, herói desta vila, o momento mais difícil da guerra ?
Candóia não esperava pela pergunta e , pego de surpresa, invocou o testemunho de alguns soldados que haviam desembarcado na Capital. Lembrou que eles falavam numa batalha de “Monte Castelo”. Fincou o pé, empinou o peito e não contou conversa:
--- Amigos, o momento mais terrível e perigoso foi a tomada do Castelo de Hitler. O homem tava entocado lá em cima, como tatu acuado. Quando nos chegamos perto, o tiro comeu no centro. Eu chamei uns soldados e tive a idéia de arrodear e entrar pelas portas dos fundos. Saltamos o muro e, enquanto os outros soldados guerreavam, subi as escadas e, la´em cima, abri a porta. Hitler tomou um susto danado quando me viu. Estava sentado numa cadeira velha de balanço , fez finca-pé e tentou fugir. Eu pulei em cima dele e sustentei o salafrário pelas orelhas cabanas dele. Comi o safado na chulipa e no sabacu. Nisso meus companheiros conseguiram entrar pela porta da frente e chegaram lá onde eu brigava com o Füher. Começaram a me dizer uns impropérios pois era eles que queriam ter o privilégio de pegar o homem. Começamos a discutir e eu me abestalhei, nisso o safado se escafedeu, eu ainda segurei ele pelo bigode, mas não teve jeito, puxou, puxou, puxou e escapou pulando lá de cima e pegando o gramear, por dentro de um carrasco danado que tinha em volta do castelo.
Cangati, então, abismado com o feito pergunta:
--- Capitão Candóia, você trouxe alguma lembrança da guerra?
Chiquim, pensativo, num deixe-me-ver reflexivo, meteu a mão no bolso da farda e encontrou o bigode que lhe completava a fantasia de carnaval. Puxou-o e, firmemente, colocou-a na mesa. A platéia, perplexa, se levantou para ver a prenda. O prefeito, meio confuso pergunta:
--- Candóia, que diabo é isso, homem de Deus ? Um Bigode ?
Chiquim, deu uma pausa teatral e, com imponência, explicou:
--- Isso ? É o bigode de Hitler...
Pedro remexeu no bigodão meio flocado em cima da mesa e, meio descrente, interroga?
--- De Hitler ? Mas ele não tinha era um bigodinho miudinho, que parecia uma mosca varejeira sentada no beiço ?
Candóia não se entregou:
--- Era miudinho, mas depois que eu agarrei o homem pelo bigode, ele puxando para se escafeder, parecia um burro brabo,dando popa,e foi tanto supapo que o bicho terminou esticando e virou esse espanador...
As festas continuaram até que o bravo herói matozense avisou que precisava voltar pois o exército já o chamara, precisava voltar ao trabalho, agora com uma nova missão caçar o Fürer fujão. Sinfrônio conclui sorridente a sua história:
--- Até ontem, Candóia não voltou! Deve estar ainda na captura do homem. Quando pegar, tenho certeza : traz junto Bin Laden e Belchior !

J. Flávio Vieira

2 comentários:

lupin disse...

zé flávio, sua fauna de personagens é de uma graça e uma hilariedade de poucas comparações.
adoro suas histórias.
abraços.

jflavio disse...

Abraço ao Lupin pela paciência em ler o texto e um Feliz 2011.