TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 12 de março de 2011

depois da chuva


I
queria voar sobre as calçadas
ensanguentadas e fedorentas
deixar para trás as sobras da tarde
enquanto o luar não escancara
sua boca de misérias humanas
enquanto o luar finalmente
não presenteia o passante com o corpo
de uma jovem puta
que sabe muito mais do que qualquer um
sobre as mil faces dessas esquinas
que lançam pesadas sombras sobre seus pelos
num fervoroso abraço de tamanduá
despedaçando as unhas
sugando as cores de muros translúcidos onde está escrito:
aqui se come a carne
por dentro com dentes de papel


II
seus peitos mal caberiam
nas dobras de minhas mãos
sua pele branca
seus negros cabelos e olhos devoradores
circulando em volta de uma nota de cem reais

suas palavras descortinando a paisagem
triste e molhada da rua do triunfo:
eu tenho febre todo dia
mataram meu namorado
sou viciada em crack
também posso ser encontrada ali
na calçada do meia nove
tenho vinte e cinco anos

nos olhos

as ruas todas desse mundo sob os pés
de piratas da vida
a mais crua verdade fabricada por falsários do amor
a mais absoluta sordidez das trocas
a cidade sem tamanho
a cidade plenipotenciária
pululando efeitos colaterias
nos olhos


III
guarde seus passos longe das cascas
das casas feitas com olhares cansados da luz
sobre as pedras as vigas as janelas de vidro
mas longe das veias e do sangue por trás da curva da avenida
seus os passos nas calçadas
as bundas além da escadaria
o próprio não ser quando nas ruas desnorteadas
pela abundância de suor
há gente de outro mundo carregando a noite nas costas

IV
lembro-me de seus olhos devoradores
seus negros cabelos
enquanto paralelamente ocorrera no busão:
duas mulheres comiam fandangos
farelos de palavras escorriam do canto da boca
sopro de olhos fulminantes circulava no meio delas
vindo do corredor entre os bancos
num tempero de cansaço
tédio
vontade de fumar
as pernas pedindo trégua
o puto que encochava a morena
e por isso não cedia um milímetro

parada solicitada
a morena desceu e levou os desejos do cara que a encochava
e desceu dois pontos depois

o trânsito estalando nos dentes
aleivosias no celular
feito lâminas retalhando a cara carrancuda
de quem só queria silêncio
e que a avenida terminasse
antes da novela das sete





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