TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Adivinha


Hortelina já havia disparado todos os tiros da macaca, já não mais havia projéteis na cartucheira. Só projetos. Mesmo assim, solteirona de longo curso, via seu sonho de casamento de vela na mão , na UTI. Até que lhe foram aparecendo pretendentes enquanto o fulgor da juventude ainda rescendia seu perfume de jasmim. Sistemática, Hortelina escolheu demais. Queria um par perfeito, um homem desses que não existem nem nos livros de ficção: bonito, rico, fiel, eterno, inteligente, elegante, educado. As amigas já lhe vinham alertando que ela precisava fazer um upgrade na folha de exigências: hoje até Homem mesmo, sem nenhum outro atributo, estava difícil de achar. Hortelina, no entanto, insistiu nos critérios rigorosos e ali estava varando a quarta década, sem a menor expectativa de ter seu sonho realizado. Mantinha, na capa, um certo ar de dignidade e placidez, uma tentativa inalcançável de mimetizar o desespero que lhe roia a alma.

Talvez tenha sido por isso mesmo que na última noite de São João caprichou no figurino. Caracterizada para a festa, desdobrou-se nas adivinhas. Tomou umas cinco colegas mais distantes, com quem se indispusera anteriormente, como comadres de fogueira. Enquanto os balões corriam pelos céus, sob o ribombar das bombas e dos rojões, enfiou uma faca virgem na bananeira do quintal. Colocou o nome de vários possíveis e desejados pretendentes em pedacinhos de papel, os enrolou e mergulhou numa vasilha com água, próximo à fogueira, voltou após a meia noite. Esperava que um dos papelitos desenrolasse o que indicaria o nome do futuro consorte. Para sua surpresa , na volta, todos estavam intactos e fechados. O desapontamento inicial, no entanto, foi minorado logo depois. Hortelina atou um anel a um fio de cabelo e equilibrou-o dentro de um copo meio d´água. O anel bateu apenas uma vez na superfície do copo, indicando casamento próximo: em um ano. À tardinha já tinha colocado uma clara de ovo em um outro copo d´água , coberto cuidadosamente com um lenço branco e uma tesoura aberta em forma de cruz. Observou o copo ao varar a meia noite: no fundo formara-se a imagem indiscutível de um navio. As amigas sorriram e confirmaram : viagem próxima. Quem sabe de luz de mel?

Hortelina dançou a quadrilha com um sorriso indisfarçável no rosto.À beira da fogueira ainda tentou ver o rosto refletido na bacia, mas não deu nenhuma importância ao fato de não ter conseguido. As outras profecias mais favoráveis já lhe bastavam. Até se arriscou um pouco mais na batidinha e ficou loquaz, como macananã em roça de milho verde. Pela manhã, arrancou com cuidado a faca da bananeira e lá estava a letra do nome do futuro noivo estampada pelos poderes de São João : “W”. Pensou, pensou, mas não lembrou de nenhum paquera conhecido que se chamasse Washington, Wanderley, Wellington. Deve ser algum arrivista, algum representante comercial que chegará pela cidade nos próximos dias, pensou Hortelina com seu califón.

Os meses se passaram e nada de se concretizarem as profecias. Um belo dia Hortelina , sem mais nem menos, apareceu com uma dor de cabeça súbita e que piorou em poucas horas. No velório disseram ter sido um tal de aneurisma cerebral. As amigas inconsoláveis não entendiam as falhas proféticas de São João: teria comemorado demais no próprio aniversário? Depois começaram a fechar o firo. Hortelina não vira a imagem refletida no espelho: sinal de que aquele era o última festa junina. A clara do ovo mostrara um navio, indicando viagem e nossa solteirona acabara de empreender uma gigantesca: com passagem apenas de ida. O anel , no entanto ,indicara casamento em um ano e a bananeira até apontara que o noivo teria o nome começado por “W” . Onde estava o furo profético? Uma comadre de fogueira foi quem desvendou o enigma. Hortelina tinha olhado a faca ao contrário e virá “W” ao invés de “M”. Seu noivo chegara a tempo e se chamava Morte: bonito, elegante,fiel e principalmente eterno. O noivo que Hortelina sonhara durante toda a vida chegara súbito e apaixonado montado no seu cavalo selvagem.

J. Flávio Vieira

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