O tempo com sua incontida fluidez produz cicatrizes indeléveis
no âmago existencial de cada pessoa. Hoje, sentado defronte a interface do
computador, fui interpelado por reminiscências nostálgicas de remotos anos
pueris, que não foram subtraídos pela distancia cronológica que separa aquela
era da contemporânea. Tempos idos, benéficos, que de fato constituíram o
caleidoscópio informativo do ser que ora transcreve fatos outrora vividos.
Parte desta história teve seu curso no fulcro de um lugarejo chamado de Sitio Formiga,
na zona rural de Barbalha; nas adjacências do povoado do Caldas.
Tenho convicção que minha personalidade fora constituída
durante todo o período que lá vivi; cuja vida simples traduzia alteridade,
entre aquela gente que mantinha a teoria comunista em gestos concretos, sem
jamais ter ouvido falar em Karl Marx ou Frederick Engels. As casas eram
construídas próximas umas das outras e, em regime de mutirão; feitas de taipa
(armadas com varas e amarradas com cipós, que se prendiam as forquilhas
centrais e laterais que erguidas davam sustentação ao teto). Com a estrutura da
casa concisamente erguida; no sertão, tinha-se o hábito de reunir homens para
tapar de barro a inédita residência pertencente ao mais novo casal do lugar. Primeiro
acontecia cobertura; outrora de palha de palmeira de coco babaçu,
posteriormente marcava-se o dia do ritual comunitário da “tapação” da casa.
O domingo era o dia ideal, sobretudo por conta da feira
que acontecia sempre aos sábados, sendo oportuno para a compra de boa cachaça
produzida em Barbalha, para animar os homens que estarão ocupados com a faina
de traçar o barro com os pés como se estivessem a dançar, deixando no ponto
para tapar toda a casa. Um bode ou um porco era abatido para servir de
“tira-gosto” para todo aquele pessoal. Luiz
Gonzaga fala de forma musicada da sala de reboco típica do sertão nordestino de
outrora.
O cariri era outra realidade a três ou quatro décadas
precedentes. Particularmente porto sensível lembranças das famosas renovações
do Sagrado coração de Jesus, que era cultuado em todo rincão caririense. Ora,
quem casava, já tinha por tradição fazer à consagração da casa e nova família a proteção inequívoca do Coração
de Jesus e de Maria. No dia celebrativo era tempo singular de reunir a
parentela próxima para um jantar de confraternização. Os familiares vinham logo cedo, inclusive
outros que residiam em localidades mais distantes, chegavam cheios de regozijo,
sobretudo os rapazes e moças para participarem do dia festivo em busca de
possíveis romances. Aliás, antes do dia, havia a visita as casas do povoado;
feita pelo novo casal, a convidar as famílias para tomar o café do santo, logo
após a reza da renovação. O convite feito uma vez, já serviria para os anos
seguintes, pois o culto aconteceria sempre naquela data livremente escolhida
pelo casal.
O curioso era a mobilização que acontecia no momento da
reza, posto que a mulheres entoavam hinos de louvor e jaculatórias, haja vista
liderada por uma senhora escolhida pela comunidade cognominada por “tiradeira
de renovação”. Esta mulher tinha um tratamento especial, sendo-lhe colocado um
travesseiro aos pés da mesa do santo para que genuflexa, seguisse todo o ritual
em posição uniforme. Os homens ficavam próximos a porta, raramente alguns
entravam, todavia retiravam os chapéus em sinal de reverencia e respeito e
mantinham-se em silencio. Quando concluída a oração final e direcionados os “vivas”
a todos os santos impetrados na parede da casa, seguia-se com o habitual café,
que pela hierarquia patriarcal, primeiro se servia aos homens, depois mulheres,
moças e por fim as crianças. Ninguém ficava sem provar do simbolismo do ritual,
pois o dono da casa saia porta afora, a convidar todos os convivas, para que
ninguém fosse excluídas das iguarias postas a mesa para serem degustadas.
Incontáveis eram os momentos vividos por nosso povo no sitio
supracitado. A diversidade de eventos proporcionava relevantes encontros, basta
ver a singularidade da casa de farinha para aquele lugar. Que felicidade ver os animais chegarem com os
“caçuás” lotados de mandiocas, e colocados no chão próximo ao forno; se formar
uma roda de mulheres e moças para retirar a casca da mandioca e deixá-la pronta
para ser triturada e prensada; depois tornada massa ser quebrada e conduzida ao
forno, tornando-se posteriormente farinha de fina espécie. A noite inteira,
desde a raspagem da mandioca, até o momento de quebra da massa, se contava
histórias, havia muitos flertes entre moças e rapazes, que só retornavam para
casa altas horas da madrugada.
Aquela região desnuda da tecnologia moderna, sem a
fantástica iluminação elétrica, dava vazão a criatividade sertaneja para tornar
as noites de luar mais dinâmicas. Na época do estio, sempre vinha para a
comunidade um tocador de rabeca deveras cego, cuja habilidade com o instrumento
era singular, e com embargada voz, cantava cordéis de memória, sendo rodeado
por toda a gente, que lhe pedia as histórias preferidas como: O Pavão
misterioso; As três princesas encantadas; A donzela Teodora, dentre outros que
compunham o repertorio musical do artista.
Este contexto histórico pitoresco deixou latentes fatos marcantes, que
perdurarão pelo resto da vida no arquivo mental de toda pessoa que ainda
sobrevive, posto que grande parte daquela gente apenas compõe parte da memória
do supracitado povoado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário