TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Anda-Já


É difícil nossos olhos avistarem além da fronteira do nosso quintal. O mais comum é que terminemos por ter uma visão bem compartimentada do mundo. Para os paulistas o universo se resume à Avenida Paulista; para os habitantes de Salitre o planeta se encerra antes de Campos Sales. Costumes, hábitos, preceitos morais terminam por ser balizados por essas estreitas fronteiras e é com olhos que mal avistam o nosso pomar que pretendemos depreender toda a complexidade do universo à nossa volta. Essa visão limitada atinge todos os segmentos sociais e termina por se transformar quase numa religião que tem a burocracia como bíblia e o burocrata no papel de sacerdote. Com esse filtro , essa viseira, perdemos a possibilidade de entender holisticamente as nuances infinitas da aquarela universal. Como um menino dentro do quadrado, julgamos tudo dentro dos limites opressivos que nós próprios nos impusemos. Através das grades, o mundo se resume a uma sala, alguns móveis, os brinquedos, a chupeta : só ! Do outro lado da parede, no entanto, sem que ao menos percebamos, fulge um sol brilhante, resplandece uma lua ao anoitecer e a vida tem possibilidades infinitas e inimaginadas.

Há alguns anos, perdemos um juiz exemplar : Dr. Nirson Monteiro. Cratense, trabalhador abnegado, simples, ele não carregava consigo aquele ar de superioridade quase divina que contagia tantos membros do Poder Judiciário. Dr. Nirson tinha ainda uma especial atenção para com os crimes perpetrados contra crianças e adolescentes. Pois bem, contava-me ele que um dia soube de uma prostituta da cidade que criava a filha pré-púbere, no próprio lugar de trabalho: uma Boate ali nas cercanias do Gesso. O juiz achou aquilo um absurdo , um visível risco à integridade física e moral da criança e intimou a mãe a comparecer ao Fórum. Pretendia subtrair-lhe a guarda, protegendo assim a menina. Contou-me ele, no entanto, que, na audiência, terminou por receber uma aula de humanismo e dignidade da prostituta. Quando o magistrado contou-lhe das suas preocupações e seu intuito de afastar a adolescente daquele ambiente pérfido, ela ouviu com atenção e respeito. Depois, calmamente, emitiu uma opinião contrária . Disse ao juiz que tivera outras duas filhas e que as afastara ainda meninotas e as pusera a trabalhar como domésticas em casas de família ricas da cidade. Imaginava que assim, convivendo em melhores ciclos, terminariam adquirindo uma educação mais refinada e teriam maior possibilidade de se tornar gente. Sabia terrível, mais que ninguém, a vida que ela própria levava, mas não tivera outra opção. Miserável , negociava com a única mercadoria que tinha em mãos: seu corpo . Pois bem, as duas meninas tinham se perdido com patrões e filhos de papai aqui do Crato . Assim, seu juiz, ela fica comigo, tem muito mais condições de ser alguém na vida, o ambiente no Gesso é muito mais sadio do que o do resto da cidade! Dr. Nirson, cumprimentou-a e desculpou-se, e agradeceu pela ajuda : acabara de olhar por cima do muro do quintal do seu universo particular.

Há uns dois anos, em uma Escola em Juazeiro do Norte, procedia-se a uma reunião do Grupo Gestor. De repente, entra a merendeira, interrompendo o evento e informa à Diretora: Aquele aluno da oitava série que a mais de dois meses gazeava a aula, na hora da merenda escolar, saltava o muro e vinha lanchar e ainda queria levar um pouco para casa. A diretora proibiu e, mais, mandou chamar o segurança do estabelecimento para pegar o menino. Queria conversar com ele pessoalmente e proibir a irregularidade. Até já tentara antes, mas sempre que avisado o danadinho saltava o muro de volta e fugia em desabalada carreira. Naquele dia, mediante a ajuda do segurança, não teve jeito. A diretora, então, repreendeu o menino e disse , claramente que não era possível. Se ele quisesse merendar que voltasse para as aulas. E, por fim, fez-se categórica : diga a sua mãe e a seu pai que venham aqui que quero falar com eles ! O menino cabisbaixo enxugou algumas lágrimas que escorriam lentamente no rosto e entre soluços informou que o pai não ia poder comparecer. Por quê ? --Argüiu a mestra ç Ele está preso, fessora, já faz uns três meses! A diretora, tomada de supetão , tentou ainda arrematar: peça então a sua mãe prá vir, menino! O rapazinho respirou fundo e, novamente, informou que não seria possível. Por quê? O aluno, envergonhado, concluiu: Ela fugiu com outro homem já faz uns dois meses! Em casa ficamos apenas eu e um outro irmãozinho de cinco anos, não temos ninguém mais nesse mundo, era por isso que eu pulava o muro: para matar a fome e levar um pouquinho para meu mano, fessora ! Impressionante a aula de vida que um pirralho de oito anos terminou por ministrar à diretora que não conseguia enxergar o mundo adiante dos muros da escola.

Se quisermos crescer temos que compreender a velocidade estonteante da vida que acontece como um filme e não se consegue revelar numa fotografia instantânea e estática. E mais: existe um universo fervilhante além das grades opressivas do nosso quadrado e muitos e muitos caminhos a trilhar além do limitado espaço que percorremos com nosso Anda-já.


J. Flávio Vieira

2 comentários:

Joaonicodemos disse...

Maravilha de texto.
José Flávio, parabéns por seu trabalho!!

jflavio disse...

abraço ao grande Nikos1 Arrume as trouxas e venha simbora , rapaz! Se não conseguir Mané D´Jardim disse que arruma as trouxas aqui prá vc.