TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Renovação


A Renovação na casa de Caçulino Viriaga terminou por se transformar num divisor de águas, nos eventos produzidos em Matozinho. Invariavelmente ,as renovações, por ali, mantinham um padrão quase que imutável. Convidava-se meio mundo de gente e o outro meio terminava indo mesmo sem convite. Pintava-se a casa previamente, com uma demão de cal virgem: a casa que ficava nova e reluzente. Os convivas compareciam com as melhores roupas: aquelas guardadas no fundo do baú para a missa do galo. A casinha atapetada de gente , dentro e fora, inchava mais ainda ante a sucessão de fogos que varavam o céu e explodiam numa algazarra danada, convocando mais gente para a festividade. Os santos na parede da sala vestiam-se de flores do campo e a imagem de Santa Genoveva , na mesinha da sala, aguardava pacientemente a entronização . O clima de festa era puxado pela bandinha cabaçal de dois pífaros, uma caixa e um zabumba. De repente o silêncio era exigido para o início dos trabalhos religiosos. D. Tudinha , a beata mais importante da vilazinha, debulhava, com ar circunspecto, os mistérios do terço, entremeado ainda de “Salve-Rainhas” e “Creio em Deus Pai”. Terminada a longa reza, após a entronização, os músicos eram os primeiros convidados ao jantar. O cardápio, invariável, trazia as inúmeras opções locais: porco na rola, galinha à cabidela, muncunzá e um aluá conservado em pote grande com fins de manter a geladíssima temperatura. Uma ou outra garrafa de mendraca terminava por aparecer de contrabando e a bandinha mantinha o rela-bucho, no terreiro batido, até altas horas.

Caçulino, naquele ano, sobre a influência de Federalina Gouveia, a esposa, resolveu modificar o padrão. A mulher tinha andado na capital, recentemente, e voltara embebida de ares grã-finos. Fora comprar umas bugigangas da china para vender numa banquinha de feira e contaminara-se com aquele importância besta. Começou logo modificando o nome do evento: Renovação soava muito brega. Avisava ao povo para ir a uma Festa de Arrepiar. Ouvira na capital um tal de Happy Hour e resolveu matozinizar o termo para facilitar o entendimento daquela ingrizia. Avisou ainda que a roupa tinha que ser passeio completo. Federalina danou-se quando os convidados lá chegaram de calça e camisa caquis, chapéu atolado até as orelhas e chinela currulepe : era essa a maneira que sempre completamente se vestiam para passear. Caçulino ,também, alijou a banda cabaçal da festividade e contratou uma bandinha com violão, reco-reco, bateria e mantiveram –sabe-se lá porque— os dos pifeiros. Tudinha também foi dispensada e chamaram um beata de Bertioga , carismática de carteirinha, D. Miralvina , para comandar a solenidade religiosa. Os santos na parede eram também totalmente estranhos : São Raimundo de Penaforte, Santa Gema Galgani e São Félix de Cantalice e entronizariam uma Nossa Senhora de Aquiropita.

Quando Miralvina começou a solenidade, a diferença era gritante. Cantava, gritava, cantarolava, mandava as pessoas botarem as mãos para cima , saltarem e dançarem. Um labacé danado. E mais, a solenidade, ou o showvação, se prolongou muito. Já eram quase dez horas quando Miralvina , enfim, puxou as Ave-Marias. Um Padre Nosso e uma Ave-Maria para a alma de fulano, um Padre-Nosso e uma Ave-Maria para a alma de Beltrano. Quando por fim terminaram todas as almas conhecidas, começaram as orações para todos os parentes e aderentes que tinham ido para São Paulo. Os convidados, com fome e sono, já estavam impacientes. Lá pras tantas Miralvina, pensativa, já sem opções puxava:

--- Um Padre Nosso e uma Ave-Maria para a alma de....

Jojó Fubuia, impaciente e melado como visgo de jaca, já gritou de lá:

--- Dos seiscentos mile cão ! É só quem tá faltando receber oração das almas do céu, inferno e do purgatório ! Vôte !

Terminado, por fim, a Showvação de Miralvina, todo mundo já estava de língua de fora. Uns três velhos já tinham dado pilôra , com fome : gente acostumada a jantar por volta das quatro da tarde. Encetou então aquilo que Caçulino já definiu com dificuldade e que cabra de língua engrolada não pronunciava: o Show Pirotécnico. Uns foguinhos de artifício, misto de lágrimas, busca-pés, pichites , rasga-latas e bufas-de-velhas. Após a pirotecnia de Caçulino , a Big Band ( assim ele a definiu) foi chamada para o banquete. Aí estourou uma outra surpresa, o Menu : um tal de Strognoff. Segundo o velho Balbino Silvestre ( um dos acometidos pela pilôra) era uma gogoroba danada: parecia um chouriço misturado com carne, só que salgado, como pia batismal. Depois da Banda, o povo entrou abaixadinho no tal de strogonoff, gostaram do tempero do bicho : uma fome canina que já os varava há mais de seis horas.

Quando a banda voltou e tentou recomeçar a festa, notou-se uma diferença substancial. Empacou. Os pifeiros não conseguiam soprar uma nota sequer. Caçulino, agoniado, os cobrou. Queriam música, festa, era prá isso que estava pagando. Só aí os pifeiros, desconfiados, informaram que seria impossível tocar. O quê? Tão ficando doidos? O que está acontecendo? O maestro, então, descobriu o malfeito:

--- Seu Caçulino, quando a gente estava jantando, um sem-vergonha veio aqui e passou pimenta malagueta na embocadura dos pífaros. Nós estamos com os beiços ardendo como se mordidos por maribondo de chapéu.

A confusão estava feita. Quem foi-quem não foi! Desconfiaram de Jojó, mas não existiam provas, nem testemunhas. Uma hora depois, Salustiano Onofre , um funcionário da prefeitura, começou a passar mal. Dor de barriga e vômitos. Terminou na botica de Janjão Cataplasma e quase embarca. Jojó ,comentando depois o acontecido, disse que ele se envenenou porque quis, não foi falta de aviso, o nome da comida já estava dizendo : Estraga Onofre. O certo é que quase todos os convidados se viram acometidos do mesmo mal de Salustiano: faltou moita a redor de duas léguas. Isso porque a timbaúba mais frondosa do sítio já estava reservada para Caçulino e Federalina que passaram a noite toda de cócoras e de sabugo na mão.

O desarranjo foi tão miséria, comentou Jojó dias depois na praça da matriz, que vocês não sabem da melhor:

--- Lembram do velho Gustavo Filomeno? Pois é, o homem é cheio de riquififes, segue uma dieta danada, não come isso, não come aquilo. Tudo faz mal prá ele, até água! Pois bem, foi para a Renovação de Caçulino e lá viu a novidade das comilanças e simplesmente não tocou em nada, nem na água benta!

--- Esse pelo menos escapou, né Jojó? ---Sacou de lá Onofre, de olho fundo, mais magro uns três quilos ! Pelo menos um, né?

--- Que nada, Onofre, que nada ! Não comeu nadinha, mas sentiu o cheiro ! Pois três dias depois, ia subindo a Serra da Jurumenha e foi soltar um peido, pois num cagou nas calças, rapaz?


J. Flávio Vieira

2 comentários:

Ana Cássia disse...

A leitura além de ser um meio de nos informar, conhecer e aprender, também é uma forma de entretenimento e diversão.Gosto muito de ler as crônicas do Jflávio, me divirto abeça! Outro dia, li uma bem legal sobre um certo sujeito de Crato, que trabalhava na grendene e mentiu para sua senhora sobre a mudança do seu expediente para o horário noturno e assim poder gazear... A senhora muito brava quando descobriu quase que o mata, e o pobre coitado foi parar no hospital. Achei super cômico! Bacana jflávio, você é um excelente cronista!!! Ana Cássia.

jflavio disse...

Cara Ana,

Legal que vc tenha gostado dos textos. Postados na Internet nunca se sabe que apreciou ou não, quem leu, quem não leu. Esse feed-back é assim fundamental. Dá vontade de continuar escrevendo quando o prazer não é so de quem escreve.
Abraço,
Zé Flávio