A morte de cada homem diminui-me,
porque sou parte da humanidade. Portanto,
nunca procure saber
por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti.
John Donne
Recentemente vários colegas se
juntaram ,atônitos e desconsertados, no velório de um amigo, contemporâneo dos doces enlevos da
adolescência. A morte traz consigo aquela mescla dúbia de sentimentos: estupor,
curiosidade, pesar, angústia, dúvida. A inevitabilidade da chegada da sombria
Dama da Noite nos impele diretamente à perspectiva futura do nosso próprio fim.
Como pôde acontecer tão prematuramente ? Por que levar uma pessoa tão cheia de vida? Por que é
tão árduo construir e tão simples para demolir? Que mistério nos aguarda do
outro lado do umbral ? Até os mais
crentes e religiosos, no fundo do coração, carregam consigo, um ponto de
interrogação em feitio de cruz. Mesmo os que têm a plena certeza da
transcendência , ante o mistério insondável batendo à porta, sempre se deixam
invadir pelo biológico instinto de preservação. Um dos colegas do banco de
escola lembrava como percebia o ciclo da vida. Começamos indo ao velório dos
avós , depois , sem que percebamos, passamos a acompanhar o esquife dos nossos
pais e depois , finalmente, o funeral dos próprios companheiros. Nesta última
fase, queiramos ou não, perfilamo-nos todos na linha de tiro, sem nenhum escudo
adiante, aguardando apenas o disparo e a pontaria ruim ou mais afiada da velha da foiçona. Todos portando imensos
rabos de palha, como não se agoniar vendo o incêndio enorme varrendo a coivara
vizinha ?
O
desaparecimento do amigo nos joga na cara verdades que teimamos em não
enfrentar. A vida é curta demais para a imensidão do sonho que carregamos.
Despendemos ainda o tempo mínimo e precioso com iniqüidades, com coisas
pequenas, com trabalho excessivo, com encucamentos desnecessários, tentando
resolver problemas insolúveis ou auto-solucionáveis. Vamos pondo nas costas uma
imensa carga de ódio, remorso, arrependimentos, ambições, aspirações
inalcançáveis e inúteis e a travessia ,que por natureza já é breve, assim
vai se tornando ainda dolorosa e insuportável.
Quando o castelo de areia vizinho ao nosso é engolido pela preamar, despertamos para a devastação próxima e
inevitável do nosso forte, ainda em mero projeto, e já pronto a ser lambido
pelas águas. No fundo, não é a morte que tememos, mas o simples arremedo de
vida que conseguimos moldar com as poucas horas que nos foram disponibilizadas.
Os
crentes me asseguram que no final dos dias todos nos reuniremos novamente. Os
espíritas me tranqüilizam dizendo que
teremos outras oportunidades em outras vidas que virão adiante. Muitos
me oferecem terrenos no céu e me oferecem ainda um número incontável de virgens
a escolher – se for chamado apenas velhinho como pretendo, ainda terei
disposição para o desfrute ? Outros me ameaçam com o a fúria de um deus irascível e o terrível
clima do inferno, se eu tentar fazer minha travessia terrestre mais prazerosa.
Já
tenho preocupações demais para este mundo. Se do outro lado da porta , existir
um outro, surpreso, tentarei fazer o
melhor possível por lá, exatamente como tentei proceder por aqui. Por enquanto vou cuidando da carne,
quando for só osso tentarei arrumar a ossada
como melhor me convier. Cantar e dançar na praça antes que os sinos
dobrem. E mais tenho que fazê-lo, agora, com responsabilidade dobrada, por mim e por aqueles que foram ficando no
caminho, como se suas vidas continuassem na minha e se elas já foram curtas pela própria
natureza, não têm necessidade nenhuma de
serem pequenas.
J. Flávio Vieira
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