Juju Bemtevi posou de delegado em Matozinho, por muitos e
muitos anos, quando do reinado dos Cangatis. Lá tinha sido colocado como elemento
da mais inteira confiança pelo grande
chefe político local: o Coronel Pedro Cangati. Juju nascera praticamente dentro
da casa do Coronel e sempre fora um dos mais
emperdenidos baba-ovos do chefe. Pedro mandava e desmandava na política
local há quase quarenta anos e tinha a habilidade de encaixar, nos devidos
escalões da administração, pessoas da sua mais completa obediência. Juju bramia com sua voz portentosa, ensaiava
autonomia e brabeza, mas sempre fora um
mero pau mandado do Coronel. Todo final de semana, junto com o destacamento
pequeno de dois soldados, prendia alguns acusados de crimes menores: embriaguez
e desordem, ladrões de galinha, valentões. Tinha uma predileção toda especial –
sabe-se lá por quê— pelos adversários históricos dos Cangatis. Na segunda-feira – já se tornara uma obrigação
– Pedro adentrava a delegacia e visitava um por um os detentos. Fazia cara de
estranheza e revolta, dava o maior esporro no delegado :
---
Tá ficando doido, Juju? Seu irresponsável ! Como é que prende uma pessoa de bem
como essa! Você é que devia estar na
cadeia, miserável! Solte imediatamente
este cidadão de bem, jóviu?
Os
presos , libertos, saiam com uma gratidão eterna ao prefeito. Nem percebiam que
ali estavam dois ótimos atores em cena : Juju e o Coronel. O Cangati sabia, com
seu faro político aguçado, que a liberdade é o maior bem que alguém pode
ofertar a outrem. Nas eleições subseqüentes, aqueles eram votos
garantidíssimos.
Juju,
por outro lado, carregava consigo , ainda, uma enorme parcialidade nos
inquéritos policiais. Amigos dos Cangatis não podiam ter falhas nem cometer
ilícitos. Inimigos políticos, nem precisavam aparentar defeitos: Juju se
encarregava de encontrá-los! Como ? Há
artimanhas dignas de Pedro Malasartes, no nosso Bemtevi.
Certa
feita, Juju soube de uma discussão em
uma bodega da vizinhança. Nonato, o proprietário, se desentendeu com uma
senhora chamada Ester e que havia comprado umas broas há uns dois meses e nunca
mais viera saldar a pendura. Os dois bateram-se na feira e estabeleceu-se uma
discussão danada, com impropérios cuspidos lado a lado, cutucados por uma
turba, que aos gritos, como torcida de futebol, ia dando corda de um lado e de
outro. Juju ouviu, da delegacia , o arranca-rabo que já se espalhara até a porta
do estabelecimento. Partiu célere para
lá com seu exército de Brancaleone. Interessava-se,
principalmente, por conta dos dois serem adversários ferrenhos dos Cangatis.
Levou-os presos, sem qualquer possibilidade de defesa. Em lá chegando, o
escrivão começou a lavrar a ocorrência. Como enquadrá-los no Código Civil ou
Penal? Um bate boca de meio de rua ! Pediu a ajuda do delegado, após tomar o
depoimento dos dois réus. Não seria mais sensato liberá-los? Aquilo se tratava
de um mero problema pessoal, uma dívida de bodega! Juju fincou pé e disse que
não : haviam cometido um crime hediondo !
---
Crime hediondo, seu delegado? Como? Pois então me diga, aí, como indicio Ester
e Nonato, em que crime, meu senhor ?
---
Não tá vendo, não , seu abestado? Tá na cara ! Os nomes dos dois já denunciam
tudo : Ester e Nonato. Artigo 171 : ESTELIONATO
!
De
uma outra feita, Giba das Melancias , um feirante de Bertioga, foi denunciado
por ter, aparentemente, roubado uma pata do terreiro de Felinto Cassundé. O velho dizia que havia pego
Giba com a mão na massa. Ele amarrara uns milhos num cordão e oferecera à pata de estimação de Cassundé. Quando a ave
engoliu os milhos, ele puxou o cordão, pegou a pata e caiu no gramear. Havia
sido denunciado pelo quá-quá-quá-quá do bicho e Felinto jurava de pé junto que era de Giba o vulto que viu se
escafedendo noite adentro. Havia agravantes e atenuantes na questão. Felinto
era amicíssimo dos Cangatis e nosso feirante tinha língua de trapo e vivia eternamente pinicando o oratório do
Coronel Pedro. O inquérito policial, aberto, dificilmente poderia beneficiar
Giba. Não deu outra! Apareceram muitas testemunhas assegurando a veracidade do
roubo perpetrado por “Das Melancias” e
Juju mandou, imediatamente, indiciá-lo.
O
escrivão, confuso, pediu que o delegado especificasse o artigo. Aquilo , mesmo
se se tratasse de um furto, perfazia de uma questão menor, passível de libertação
imediata do réu:
--Um roubo de uma pata? Ora me poupe
, seu Delegado !
Juju,
de seu lado, cuspiu fogo:
---
Prisão que nada ! O réu é inimputável,
seu escrivão! Quero que seja encaminhado imediatamente ao manicômio judiciário
da capital !
O
escrivão não conseguia entender uma loucura daquelas:
---
O roubo de uma pata, seu delegado? Manicômio
judiciário ? O senhor tá doido, tá ?
---
Manicômio , sim, seu escrivão! Eu tenho é trinta anos nas barras dos tribunais.
Roubou uma pata ? Pois é! Esse Giba só pode ser um PsicoPATA ! Recolhe !
Semana
passada, Bemtevi deixou claro que tinha dois pesos e duas medidas. O Capataz do
Coronel Pedro Cangati teve uma desavença com um Caxeiro Viajante que , segundo
a versão do capataz, andou se enxerindo para sua esposa . O Capataz seguiu os
primeiros sussurros da vila e, não quis saber. Sapecou uns cinco tiros , a
queima roupa, no nosso viajante que, naquele mesmo momento, empreendeu uma
viagem mais longa e com passagem só de ida.
Fez-se
um furdunço danado em Matozinho. Bemtevi , de repente, viu uma enorme batata
quente cair-lhe às mãos. O assassino se escafedeu. A opinião pública
horrorizada pedia justiça. O Coronel, por sua vez, pressionava o delegado para
minimizar o acontecido no inquérito. Não queria ver, de nenhuma maneira, seu
capataz condenado. E cabeça de juiz e bunda de menino é como cabeça de mulher, dizia ele: ninguém
sabe o que vai sair lá de dentro. À noite, com a solidão como cúmplice, Juju
convocou o escrivão e ordenou que colocasse como Causa Mortis : Intoxicação! O escrivão não acreditou no que
estava ouvindo:
---
Tá ficando louco, delegado? Intoxicação ? Com essa ruma de buracos de bala pelo
corpo ? intoxicação de quê ?
Juju,
de lá, mostrou seus conhecimentos inequívocos de Medicina Legal :
---
Intoxicação Aguda por Chumbo !
J. Flávio Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário