Parecia previsível : não seria
nada fácil o dependurar das chuteiras para Sonevaldo Socó. Aposentadoria para
homem é sempre uma espécie de fim: a morte produtiva : aquela que precede ao
final golpe de misericórdia desferido pela
lâmina afiadíssima da Velha da Foiçona. De repente, após toda uma vida
de batalhas cotidianas, vê-se o sujeito recluso numa cela totalmente
desconhecida e inóspita: sua Casa. Como se um maratonista olímpico, de repente,
se visse , na imobilidade de uma cadeira-de-rodas. No caso de Sonevaldo, a
inadaptação parecia, de longe, bem mais
contundente. Era motorista de caminhão. Passara toda a vida na estrada,
transportando carretos Brasil afora. Aquela vida de Indiana Jones, sem destino
pré-determinado: as cargas é que o conduziam e não o inverso. Vivia no mundo,
passeava em casa! Socó conhecia praticamente todas as vias deste quase
continente brasileiro. A cada dia: novos
horizontes, novos conhecidos, novos amigos, novos amores. De dois em dois meses, aparecia em casa,
revia os filhos e a mulher, arrumava os teréns e caía na rodagem novamente. A
aproximação da aposentadoria, no entanto, trouxe-lhe mais paz que fastio. Mais
de quarenta anos de estrada , a juventude já embotada na poeira das rodovias,
Socó imaginou que merecia o recolhimento. Estaria mais próximo dos filhos e da
esposa, órfãos de sua presença por quase toda a
existência.
Os
primeiros dias com o pé longe do pedal do acelerador lhe trouxeram uma parente
tranqüilidade . Aos poucos, no entanto, foi descobrindo que o mundo mudará
totalmente enquanto vivia no meio do mundo. Os filhos haviam crescido e já
cuidavam da vida e tinham casa própria. A esposa já não era aquela mocinha
inocente e garbosa que ali deixara nas primeiras viagens, teimava em aparecer
com cãs e rugas salientes . Os amigos e
conhecidos estavam espalhados pelo país, não moravam naquela cidade que,
também, crescera e perdera o jeitão de Vila. Aos poucos o pijama de bolinhas e a cadeira de
balança começaram a pesar. Batia-lhe aquela sensação de gado, na fila,
aguardando a hora do abate. Tentou ocupar-se em trabalhos domésticos, até
descobrir que homem, em casa , não tem qualquer serventia. Imiscui-se em
assuntos de que ,de todo, não tem qualquer know-how. Rapidamente se desentendeu
com a empregada que há mais de trinta anos servia à família. Voltou-se, então,
para a esposa que tomou as dores da funcionária de tantos anos. No fundo, D.
Geni percebia que hoje era mais fácil conseguir outro marido que outra
empregada como Ambrosina.
Desencadeada
a “Guerra dos Cem anos”, Socó resolveu ganhar a rua e procurou os escritórios
mais apropriados à sua tribo : os botecos. Caiu na cachaça com uma voracidade
impressionante e , cheio de meropéias e de razões, começou a procurar emboança na rua e também em
casa.
O tempo, que já andava turvo, sujeito a
trovoadas e relâmpagos, tomou ares de tempestade. D. Geni já tinha gasto o guarda-chuvas e o pára-raios
com muitos vendavais e resolveu-se pela separação. Mais uma vez, antes da
audiência de conciliação, aconteceu o previsto : Enfarte ! O coração de
Sonevaldo não agüentou tanto repuxo. Interno, encaminhado à cirurgia ( três
pontes de safena e uma mamária), por fim, abrandou-se a raiva da esposa. Tocou-lhe a
alma um sentimento de culpa, ao ver o companheiro de tantos e tantos anos mais
chagado que São Francisco.
--
A culpa é minha, devia ter tido mais
paciência com ele !
Ao
despertar na UTI, Socó pôs-se a pensar com seus tubos, sondas e cateteres. Depois de percorrer tantas
e tantas vias, Brasil afora, chegara num ponto onde a estrada empacara. Não havia saídas e nem possibilidade
de se pegar um retorno. O tempo, então, lhe providenciará aquelas pontes,
abertas ao peito, por onde a vida , agora poderia fluir mansamente. Até onde ?
Até quando !
J. Flávio Vieira
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