TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Planos Terminais - José do Vale Pinheiro Feitosa


- O Plano de Saúde dele tem cobertura?

- Tem! Vamos fazer a cirurgia na próxima semana e depois envio para você começar a quimio!

- A sobrevida é quase a mesma sem tratamento! Você sabe? A família pode participar?

- Pode! Tem grana. São comerciantes pesados. Eu pinto o quadro e você dar os retoques por aí.

- Pode deixar.

Quando há uma família no circuito um diagnóstico de uma neoplasia maligna com metástase é um limite intransponível. O acolchoado que protege a vítima da notícia é formado por desencontro entre os membros da família. O desespero pela má notícia e o comportamento pessoal a apontar atitudes divergentes. Ficar mais tempo fora de casa do que costuma. Evitar encontrar os olhares dos parentes para não sentir o peso da sentença. Os crentes a orar. Os jovens a inventarem embalos para se distraírem.

O doente, a vítima, o detentor da mais verdadeira e indesejada notícia sente os sintomas que eram vagos, mas intensos, embora ainda se engane ao aceitar a mentira que os resultados ainda estão por vir. Aquele excesso de otimismo. Os planos exagerados de viagens de sua mulher. A reforma da casa que nunca puderam. A compra daquele sítio que ela sempre boicotou. Por certo que algo há além da espera por um diagnóstico que na sua expectativa deveria ter saído. Mas ainda não saíra. Mas saíram tantos planos antes negados.

Finalmente orientada pelo cirurgião oncológico, a mulher e mais um dos filhos levam aquele que tanto espera para que o próprio médico lhe dê a notícia com suas técnicas de apontar a morte para em seguida vender-lhes esperança. Nem precisamos saber os detalhes do elaborado “diálogo” do especialista. Inclusive os efeitos colaterais daquela conversa.

Mesmo ciente que todos aqueles que ainda não morreram um dia morrerão, o depositário de vãs esperanças não admitia a morte. Aliás, não é bem isso: tem fobia descomunal com o segundo em que a vida lhe for fugindo. Aquele momento exato em que não haverá mais retorno, aquilo que até a bíblia aponta: a agonia da morte. Essa é a questão central dele: se curará definitivamente daquela doença e jamais aceitará ficar na fila daquele momento sob o sofrimento do corte cirúrgico e todo o cortejo hospitalar e depois a destruição física da quimioterapia. Neste caso prefere resolver o problema fugindo dele através da janela da breve morte induzida que o exima da espera com hora marcada.

Foi por aí que a consulta médica se contradisse. O médico cada vez mais incisivo na solução e o paciente cada vez mais resistente a ela. Sem contar intervalos para os médicos se comunicarem e o clínico informar que as drogas já estavam todas disponíveis para a família comprar por fora. A argumentação era superior até às questões clínicas e cirúrgicas ou à inexistente sobrevivida com aquele estágio fora de possibilidades terapêuticas. Interpunha-se entre a solução médica e o seu paciente, uma viagem dos colegas e suas respectivas famílias para esquiarem em Aspen. Aquele paciente medroso era quase um assalto às pretensões financeiras da sacra ciência e de todo o arcabouço meritocrático.

E foi neste clima que o clima definitivamente azedou e não se sabe como lá estava o médico aos berros apontando um bisturi em direção ao paciente em franca garra de combate. A coisa degenerou a ponto do paciente tomar o bisturi da mão do médico e em seguida, num acesso extremo de autodefesa, tentar cortar a garganta do doutor. Para sorte daquele promitente da morte a lâmina estava cega.

A família estava arrasada. O escândalo serenou com a família saindo às pressas do consultório. Mas a mulher como sempre tinha a noção da sobrevida e conseguiu que o marido fosse até um hospital público especializado. A médica, muito atenciosa, fez as entrevistas necessárias, uma Assistente Social completou o atendimento, o clima estava por aí e quando ela apresentou uma solução quimioterápica apenas, deixou claro que a sobrevida não ultrapassaria de dois anos.

O paciente repetiu os mesmo argumentos: não iria esperar uma morte lenta por dois anos, com um intervalo terrível de quimioterapia. Preferia tudo resolvido nos próximos dias. A esposa entrou em parafuso e a médica até vacilou. Mas o chefe da farmácia foi até a médica e pressionou pelo protocolo. Ela teria que seguir o protocolo. E o protocolo mandava realizar a quimioterapia.

O paciente ficou furioso: não quero. Quero ir-me agora. O protocolo não é meu, é de vocês ou do fabricante deste remédio. Não é meu. Se os impostos servem para isso, usem noutro, não em mim. A esposa se aproximou e começou a pedir ponderação ao marido, quem sabe Deus não ajuda e o remédio faz um milagre. Milagres existem!

- Para a indústria farmacêutica. Este é o milagre. – Gritava o impaciente.   

Finalmente a médica pediu licença para sair da sala e que a esposa a acompanhasse para uma conversa com a “supervisão médica”.

Com bata absolutamente branca, gravata italiana vistosa, camisa de grife o supervisor sentenciou: está na hora da senhora se afastar do seu marido e deixar que os nossos profissionais resolvam o assunto.
Suado. A respiração ofegante, o coração disparado e a boca seca, acordei-me de um pesadelo sem, no entanto, esquecer o mundo no qual respiro mansamente.     

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