O conhecimento é cumulativo até que de repente, num ponto de
transição, dá um salto e muda de patamar. Assim como a água que vai acumulando
calor até que entra em ebulição e se torna vapor.
O salto no nosso conhecimento acontece o tempo todo. Os de
fala inglesa chamam isso de insight, é aquele lampejo da inteligência que de
repente compreende algo que estava na fronteira, mas ainda não se havia percebido.
A célebre maçã da lenda que na gravidade a jogara na cabeça de Newton.
Vou falar de duas experiências pessoais. Uma com Oscar Niemeyer
e outra com Lúcio Costa. No primeiro ano do governo Brizola eu coordenava uma
área de controle de doenças e fui escalado pelo Secretário de Saúde Eduardo
Costa para ser contraparte da Secretaria de Saúde no Programa de Educação dos
CIEPS na ocasião sendo gestado pelo Darcy Ribeiro.
Na primeira reunião com Darcy Ribeiro, cheguei cedo à antessala
e fiquei aguardando o Darcy terminar outra reunião. Estava sozinho quando Oscar
Niemeyer entrou, sentou-se numa poltrona ao meu lado. E ficamos esperando
sermos chamados.
Então com trinta e poucos anos a minha tietagem aflorava naquela
oportunidade de ao lado de um ícone brasileiro sofrer a angústia de não dizer
nada. Na petulância da mocidade querendo aparecer. Mas a serenidade de Oscar
não convidava a esse tipo de tietagem. E foi aí que começamos a falar das
nossas matérias ali: a construção dos CIEPS.
Em resumo: o salto de conhecimento a respeito de Niemeyer
não foi sua genialidade e menos ainda um traço exuberante de sua personalidade:
a criatividade. A nossa conversa, naquele tom um pouco monocórdico dele correu
em torno da finalidade e da responsabilidade. Oscar não criava um projeto
arquitetônico como arcabouço ambiental, na verdade ele apontava a confiança no
projeto pedagógico de Darcy para aí sim criar o ambiente em que o dia-a-dia de
alunos e professores iria potencializar o futuro do país.
Niemeyer tinha compromissos com ideias e com projetos de
transformações da humanidade. Quando muito se vêm em perplexidade por Niemeyer
manter-se um marxista convicto e à espera de um sistema comunista de
organização social, não tome como medida a Muro de Berlim e nem o fim da União
Soviética. Niemeyer e muita gente mais não pensa o mundo apenas como um
aparelho ideológico para se aplicar a toda e qualquer realidade. Ao contrário:
eles têm a convicção que era preciso pensar a crise do sistema dominante para
que se possa ter um amanhã que seja um salto no conhecimento da nossa
realidade. E não se trata apenas da esperança, mas, sobretudo, de remexer os
escombros para a matéria do futuro.
Encontrei Lúcio Costa no aniversário de Pierre Gervaiseau,
casado com Violeta Arraes. Lúcio já com mais de 90 anos, sentava-se numa
cadeira relativamente baixa, junto aos batentes que ligavam a sala a uma área
descoberta. Sentei-me nos batentes, ao lado dele, igual companhia não podia ter
para aquela noite.
Lúcio Costa não falou de grandes projetos, de grandes
realizações. Não posso nem dizer que levantou grandes críticas ao mundo naquela
passagem entre o século XX e XXI. Aliás, ali estavam pessoas importantíssimas
da história do século XX no Brasil, como Celso Furtado, Luiz Carlos Barreto,
Célio Borja entre outros. E a lição de transição de Lúcio Costa foi no sentido
que as montanhas da cidade do Rio de Janeiro precisavam retornar às suas dimensões
dominantes na paisagem da alma carioca. Os prédios ao escondê-las e ao se
erguer diante dos nossos pés como ciclopes de segunda categoria haviam
escondido a silhueta histórica da cidade.
Oscar e Lúcio não vagueiam entre a simplicidade e a complexidade,
entre a genialidade e mediocridade, entre o lírico e o poético, ambos estiveram
no mundo querendo pensa-lo, em suas contradições e no que o conhecimento é
capaz para garantir o humanismo como um norte além da selvageria individualista
do capitalismo cumulativo.
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