Acredito que terá sido Pero de Magalhães Gândavo , na sua “História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil”,
publicado em 1576, que já alertava : os indígenas costumam pintar papagaios
para vender como araras aos viajantes menos atilados. E assim tem sido
historicamente, amigos , desde nossas mais remotas origens : nossas leis mais
rigorosas simplesmente não pegam; as normas mais pétreas sempre têm uma
escapadinha possível; os ritos mais
sagrados banham-se rapidamente em águas profanas; nossas guerras e revoluções
mais sangrentas não pingam uma gotinha de sangue sequer. Culturalmente sempre
há um “jeitinho” para se resolver tudo. Indignamo-nos,
facilmente, com as tragédias que nós mesmos produzimos, seja na vida pública,
na esfera privada, na política, na economia. Entupimos a cidade de lixo e nos
queixamos da sujeira; desmatamos nossas encostas e reclamamos das enchentes;
elegemos políticos corruptos e, depois,
nos revoltamos com os desmandos e os desvios de verbas.
Dias
desses, um amigo tomou uma Topic para Nova Olinda. Ao passar no Colégio
Agrícola, o motorista alertou os passageiros : “Pessoal, coloque o cinto de
segurança que vamos passar no Posto da Polícia Rodoviária!”. Ultrapassada a
vigilância, na altura das Guaribas, ele voltou a informar : “Pessoal, já
passamos do Posto, podem desafivelar os cintos !”. Existe uma conduta mais brasileira
que esta ? Na Expô/Crato e na Festa do Pau de Santo Antonio os políticos locais
providenciam para que se evitem blitz, para que se afastem os bafômetros:
fiscalização demais, eles alegam, pode prejudicar a festa. Dane-se o Código
Nacional de Trânsito! Seque a Lei Seca !
Esta
semana convivemos com a tragédia indizível da Buate de Santa Maria, onde mais
de duzentos jovens perderam a vida. Impossível imaginar tantos ninhos
desfeitos, tantos sonhos prematuramente esmagados, tantas mães e pais à deriva,
sem um profundo sentimento de comoção nacional. E esta, também, é uma
característica bem brasileira: somos solidários e emotivos. Gostamos de nos ajudar
mutuamente. Claro que carregamos conosco preconceitos atávicos. A dor e o
sofrimento no Sul e Sudeste têm um peso bem maior que nos grotões do Norte e
Nordeste. A Seca no Piauí não tem a mesma importância da enchente em
Teresópolis. Constatada a tragédia como em Santa Maria, estabelece-se a corrida
desenfreada em busca dos culpados. “Queremos Justiça!” “Essa calamidade não
pode se repetir !” Rapidamente, posto o excremento no ventilador, muitos sairão
pouco perfumados. De quem é a culpa afinal? Do dono do ventilador? De quem
colocou o excremento nas suas aspas? De quem ligou o eletrodoméstico? De quem
não verificou a funcionalidade do bicho ? Possivelmente, pelas proporções
gigantescas do holocausto de Santa Maria, todos os atores sairão mais ou menos calabreados.
Mas
, no fundo, a mesma história tende a se repetir. Brasileiro não trabalha com
prevenção do fogo, só como bombeiro. No dias que se seguiram ao incêndio, o
Brasil todo começou a fiscalizar as Casa Noturnas e encontraram inúmeras
irregularidades. Todas estavam perfeitamente aptas a refazer a calamidade
gaúcha: esperavam apenas um estopim. Por que não vinham sendo vistas com a
regularidade necessária ? Por que o problema não tinha sido detectado antes e
sanado antes do sacrifício de incontáveis vidas ?
E pior,
amigos, escrevam aí : passados os primeiros momentos da tragédia, sepultada a
notícia por outra mais cabeluda, tudo volta a ser “Como Dantes no Quartel de Abrantes”. Depois do grande incêndio no Grand Circo
Norte-Americano em Niterói , em 1961, o que melhorou na segurança destes
espetáculos ? Quem fiscaliza os Circos, quando chegam nas cidades e quem
verifica a segurança a fim de liberar o
alvará de funcionamento? Após as
enchentes de Teresópolis e Nova Friburgo em 2011, que se fez para que novas
catástrofes não venham a acontecer ? Você se sente seguro em mandar seu filho a
um parque de diversões após as medidas tomadas depois do Acidente no Parque
Hopi Hari em São Paulo , no ano passado ?
Culpados
serão apontados em Santa Maria, processos se arrastarão na justiça, mas a
centenária instituição do “jeitinho” providenciará para que
os responsáveis saiam sapecados, mas ilesos. Só não há “jeitinho” para a
imponderável dor das famílias diante da perda incalculável dos seus filhos
queridos; nem para que essa tragédia anunciada não se repita. Enquanto isso , vamos dando nosso
jeitinho para que os papagaios continuem sendo negociados a preço de araras,
exatamente como há cinco séculos atrás.
J. Flávio Vieira
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