Em meio ao mundo utilitarista
em que vivemos, somos, continuamente, impelidos a crer que as
cidades são constituídas de prédios, de
ruas, de carros, motos, muros e paredes. Ledo engano, amigos ! Uma peça de teatro, se se reparar bem ,
não se resume apenas ao cenário. O que a
faz grandiosa ou medíocre é o doce
tecido do seu enredo, a maneira sutil e poética com que os personagens
desfilam, dialogam, interagem. É da leve trama das relações humanas, do bordado
fino das aproximações, do macramê tantas vezes grosseiros das suas dissensões de que são fiadas as vilas e as
cidades. Cada um de nós é uma linha nesta delicada trama. Alguns têm capacidade
menor de insinuar-se entre os outros fios e se puem mais facilmente. Outros ,
tangidos pela agulha do destino, banham-se de cores, mergulham no coração do
tecido , em sucessivos vai-e-vem e terminam por fazer brotar o bordado único
que embeleza a toalha da vila e da vida: a casa, o lago, o sol, a árvore. Sem eles, a urdidura do pano permaneceria na
inércia da opacidade, na insulsa imacuidade do branco.
No
último mês , o Crato viu esmaecer-se um pouco sua aquarela. A mão
implacável do tempo desbotou, um tanto,
o colorido do nosso estampado. Claro que o pano se vai puindo e outros
desenhos vão surgindo nas extremidades, no faz-desfaz das ondas das horas. Mas
doe-nos imaginar que os ornatos que nos acostumamos a admirar, jamais os veremos de novo com as mesmas cores
e as mesmas nuances. Um dos fios chamava-se Antonio Luiz Barbosa e era querido
por todos. Funcionário aposentado do Banco do Brasil especializara-se na fina
arte de fazer amigos. Um deles havia sido o Dr. Antonio Gesteira , uma das mais
mitológicas figuras da terra de Frei Carlos e que nos deixara há mais de
cinqüenta anos. Antonio Luiz fez-se o guardião da memória do nosso carismático
cirurgião. Deixou, ainda, o mais completo trabalho que conheço sobre a vida do
amigo, escrito num português correto e erudito, típico de quem havia perlustrado
os umbrais do velho Seminário São José. Boêmio, amante das noites e tardes
da sua terra, compunha um grupo dileto
de companheiros em que, estranhamente, o principal atrativo que os unia era a
conversa, a palestra, a fofoca e não outras libações. Essa trupe engalanou as
rodinhas da cidade por muitos e muitos anos e trazia nas suas hostes membros ilustres e queridíssimos : Caio Teles, Felicinha, Tália, Márcia,
Regina Helena, Telizito, Dolores Milfont, Antonio Primo, Dionê e Natércia
Pinheiro. Todos ainda tão presentes entre nós, dispersos que foram pela inexorabilidade do tempo. O Crato fica menos
colorido quando se percebe que toda uma trama rica do bordado se esfumaça.
Nestes
dias, outros passamanes se desfizeram. Partiu o mais importante poeta-cronista
caririense da atualidade. Mestre da poesia de circunstância, úmido do fino
humor e sarcasmo da poesia popular, nosso poeta fez-se o fino crítico dos
nossos costumes e da vida cotidiana cratense nos últimos cinqüenta anos.
Chamava-se Zé Landim. Esportista nos anos áureos do futebol de salão cratense,
fora um goleiro inspirado e admirado. Alma boêmia, tinha a noite como irmã ,
parceira e cúmplice. Seresteiro incensado, sua voz bonita e afinada inundou as
serestas caririenses e saudou nossos luares. Interessante figura humana, Zé
Landim fabricava amigos com a mesma facilidade com que se enfunava de arroubos
os mais pueris, talvez porque , no fundo, nunca tivesse deixado crescer a
criança que carregava consigo e norteava seus passos de artista. Zé foi um ser múltiplo mas , certamente, era o
fino bardo da poesia circunstancial que mais se lhe sobressaía. Era um craque.
Vejam, por exemplo, as músicas de
campanha eleitoral. Alguém já viu coisa mais besta e banal ? Alguém se lembra
de alguma da última campanha? Pois bem, há quarenta anos, Zé Landim fez um
paródia para a campanha eleitoral de Pedro Felício que ainda hoje, pasmem
vocês, está na lembrança de toda uma geração :
“O
Crato, já foi princesa
A
todo mundo causava admiração
Seu
Pedro, na prefeitura, prá todo mundo
Deu
show de administração...”
A
maior homenagem que podemos lhe fazer, é lembrar algumas dessas crônicas
poéticas que ,se não escritas, tangidas
pela volátil lembrança da oralidade, terminam por se perder na voragem do tempo.
Pois vamos lá ! Grande Zé Landim!
Zé
fora dileto amigo e correligionário de um dos mais populares políticos do
Cariri. Sabe-se lá porque, uma grande confusão aconteceu. E, em se tratando do
nosso poeta, não se fazia necessário
muito para acender o estopim curto e inflamado. A intriga perdurou por muito
tempo. Um dia, estava ele na rua conversando com um amigo comum, quando uma
caminhonete parou colada aos dois. Era o político. Conversou com o amigo, mas
como se dirigisse aos dois, pretendia, de alguma maneira, acabar com a infuca
que já durava anos . Zé Landim fez ouvidos de mercador. Vindo da fazenda, após
os cumprimentos, tirou o político dois queijos e presenteou os dois. Ao sair,
Zé , desconfiado, cedeu o queijo ao amigo e à tarde mandou-lhe uma quadrinha que , genialmente, resumia o
encontro :
“A
velha cidade do Crato
Doutras
plagas é diferente
Lá
se dá queijo prá rato
Cá
rato dá queijo a gente”
Zé Landim freqüentava, também, com amigos de boêmia, a bodega de uma outra figura adorada em
Crato. Era ali numa das esquinas da Nélson Alencar e o proprietário : Heleno Feitosa, um desses desconhecidos
heróis do cotidiano. Heleno trabalhava de sol a sol. Almoçava no próprio estabelecimento,
não arredava o pé e com aquele pequeno
comércio, trabalhando diuturnamente, formou todos os filhos e os fez cidadãos
de bem. Um dia, Zé notou que Heleno ficava todo tempo sentado e com um pé
inchado e em cima de um outro banco. Perguntou-lhe se o tinha fraturado em algum acidente. Heleno,
então, informou-lhe que se tratava de um esporão de galo que estava nascendo no
tornozelo e incomodando como o diabo. Pouco depois, com o poder de síntese dos
grandes poetas, Zé resumiu tudo numa Nona inesquecível :
“Heleno Sales Feitosa
Leva
uma vida penosa,
Todo
dia faz serão,
Trabalha
que só um louco,
Todo
tempo prá ele é pouco
E
mal engole o pirão.
Trabalha
o ano inteiro,
Não
tira o pé do poleiro,
Já
tá nascendo esporão.”
Uma outra história envolve nosso
poeta e um outro mito cratense: João Aires de Aquino, conhecido por todos pelo
carinhoso sacro-monárquico apelido de Dom João. Nosso quase rei ou bispo era
proprierário de um dos mais famosos bares da cidade e que, pelo próprio
temperamento algo difícil do dono, tornara-se quase um clube fechado. Zé Landim
era um dos membros titulares e vivia a
cutucar onça com vara curta, aperreando o proprietário aqui e ali, esperando a
reação. Um dia saiu na cidade a notícia que D. João havia sofrido um acidente
de carro e estava ainda em recuperação, todo enfaixado. Zé Landim visitou-o e,
depois, resumiu, assim o ocorrido :
“João Aires de Aquino
É
um menino traquino
E
mexe com todo mundo,
Num
desastre de veículo
Quebrou
o par de testículo
E
as quatro pregas do fundo”
D. João agüentou firme os
primeiros versos, mas no final, saltou do cavalo :
---
“Pensa queu não sei o que você tá insinuando, rapaz? Você tá querendo dizer
queu só me restaram quatro, né, seu filho duma mãe?
Sem Zé Landim e Antonio Luiz
desbota um pouco a alma encantadora da cidade.
O Crato fica mais chato e menos gaiato: tira o pijama e veste a gravata.
J. Flávio Vieira
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