TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 4 de junho de 2013

Esta crônica do Ruy Guerra sobre os brasileiros reflete muito bem o olhar estrangeiro sobre nós, embora nem sempre a impressão se mantenha por muito tempo:

Ruy Guerra 
"Há povos que fazem do seu sofrimento uma escola.
O português tem o retrato da sua alma no lamento do fado; o argentino, na arrogância do tango; o espanhol, no flamengo nostálgico da Ibéria mestiça.
O brasileiro se encontra na alegria. A imagem mais concreta da sua alma é a do seu sorriso sem dentes. O lugar comum é que o Brasil é o país do sol, do futebol e do carnaval. É um clichê mas tem os seus fundamentos.
O Brasil, em matéria de dor , é um hospital, uma casa mortuária e um cemitério. Mas o brasileiro é o povo menos masoquista que existe. Canta alegremente a dor, dança com o seu sofrimento. Isso talvez venha da costela africana, mas seja de onde venha, não perdeu o sadio primitivismo com a invasão da alta tecnologia, do laser e dos computadores.
O brasileiro é um otimista estrutural, precisa de motivos para estar triste, não precisa de nenhum para estar alegre. Perde um olho, não chora o olho que perdeu, canta a alegria de ver com o outro.
O ato de viver é, desde o parto, um largo sofrimento, mas o brasileiro parece não querer tomar conhecimento. Para ele a dor necessita uma justificativa maior, a alegria tem em si mesma a sua razão de ser.
Vive rindo e morre de sorriso nos lábios. Também mata às gargalhadas, tortura às gargalhadas e daí que a violência brasileira seja talvez mais insustentável, porque sublinhada pela sua cruel contradição.
O brasileiro é de um intrínseco paganismo na sua profunda religiosidade. Parece preferir as religiões africanas, não por acreditar mais nos seus santos, mas pela explosão da sua liturgia: um deus a quem se chega com gravidade é um deus que se respeita, mas nao se convida para tomar cafezinho. Negando a dor, se torna um iconoclasta.
O brasileiro parece nada levar a sério, o que não o impede de fazer as coisas com seriedade, porque nao existe nenhum ato de maior gravidade que o humor. E ninguém sabe rir melhor de si mesmo.
A Europa está velha, quem enche a boca com essa afirmação são os próprios europeus. Claro que dizem isso sem acreditar, mas é mais um clichê que é verdade.
São graves, compenetrados, importantes, dominadores, sadios, o que quiserem, mas perderam (ou nunca aprenderam) o caminho da alegria. Sabem fazer piadas, inventar anedotas - mas sim sobre os outros - o que assume uma forma de arrogância, não de humor. Podem achar que são felizes, mas não são alegres na sua felicidade. E se asfixiam nessa ausência. Reconhecem no brasileiro a alegria que salta por todos os poros, e não a compreendem. Só lhes resta um desprezo invejoso ou uma admiração cautelosa.
O turista estrangeiro vai ao Brasil consumir a alegria que lhe falta na sua felicidade, sem compreender o mistério da convivência de uma sociedade destroçada (que também lhe pertence), com uma euforia de viver (que lhes é negada).
O brasileiro é incovenientemente alegre demais. Sem motivo aparente, fala alto demais, ri alto demais, grita alto demais, veste-se alto demais, faz tudo demais. Esse demais é que explica tudo o que não tem como ser explicado, porque a alegria escapa aos manuais de etiqueta, é por definição informal, rompe com o bem-comportado, estraçalha com o bom-tom, os compêndios, a lógica.
O brasileiro se despe na alegria. Já o tentaram vestir de terno e gravata, enfiar num smoking, enterrar num pijama de madeira, emprisionar numa farda. O único uniforme que vai bem no brasileiro é a nudez, que é o que há de mais próximo à liberdade, à irreverência. O brasileiro continua sadiamente nu no riso.
O brasileiro nao tem vergonha de nada, so' de estar triste. A alegria é despudorada.
O brasileiro é hipocondricamente alegre, até na morte. Num velório, é preciso fazer força para manter um mínimo de formalidade, imposta pela herança de um ritual alheio, que no fundo nao entende, porque a dor não é incompatível com a alegria. Velório que acaba em festa é a maior homenagem que se pode fazer ao morto.
O sofrimento é, para a maior parte dos brasileiros, uma abstração, uma jornada transitória, um estágio para a alegria, que é uma inevitabilidade histórica, como a copa do mundo de futebol. Uma vitória que pode tardar, mas que está sempre para chegar, e chega. Porque o futebol, mais do que um esporte, é o ritual da consagração inevitável da alegria do povo brasileiro. E os garrinchas, seus ogãs e sacerdotes alados.
Um brasileiro alegre é um pleonasmo. Um brasileiro triste, um enigma.
Em bom francês, do alto do seu cartesianismo, o general Charles de Gaulle disse que que o Brasil não era um país sério. Coitado, passou por Roma, mas não viu o Papa; o país é mais sério do que qualquer outro.
Stefan Zweig, para mim um escritor menor, quando num lampejo escreveu " Brasil: país do futuro" acertou mais do que ele mesmo - e muitos dos que o leram e torceram o nariz - poderia imaginar, porque o futuro do Brasil nao está só no amanhã, mas também no ontem e no hoje. Está na sua perene, indomável e subversiva alegria."

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