J. Flávio Vieira

Aceitou,
resignado, o diagnóstico frio que o
médico lhe passou alguns dias depois de pôr a medalha no peito:
---
É câncer no estômago, Sr. Emiel e em fase terminal ! Curta bem este verão, viu
?
Havia
alguma coisa de sádico naquele prognóstico. O médico parecia dizer-lhe,
indiretamente :
-- Tchau ! Já basta de mamar na previdência do
país! Você está burlando todas as estatísticas de expectativa de vida, não tem
vergonha, não ?
No primeiro momento, saltou-lhe aquele
instinto de preservação: E se o sacana do médico estiver errado ? O exame não
terá sido trocado ? Com o passar dos dias, no entanto, vendo-se fragilizado, as
forças se esvaindo pelo ralo das horas, conformou-se: estava, por fim, prestes
a cumprir a última cláusula do Contrato de Consignação: deveria desembarcar na
próxima parada ! Podia, claro, sentir-se apeado da vida, obrigado a abandonar o
trem em plena viagem, mas compreendeu, rapidamente, que aqueles não eram tempos
de semear ou de colher, mas de ressemear. Fechava-se o ciclo da existência.
Percebeu, no entanto, que talvez a dor e a angústia do desembarque poderiam apagar ou nublar a
bela memória da travessia. Alguns dias de fel , quem sabe, arrancariam o enlevo de toda viagem. UTI, dores lancinantes,
Respiração Artificial : a Morte a crédito. Estava, graças a Deus , na Bélgica, onde a
morte e seu séquito não precisam ser
necessariamente crônicos , a tortura final da existência humana. Foi assim que ,
decidido, encomendou a eutanásia e reuniu todos os amigos , colegas e parentes
naquela celebração. Queria-os testemunhas, acólitos e convidados ao ritual.
E, enquanto , gota a gota, espalhava-se na
veia, lentamente , o combustível
que, como um relógio anti-horário,
marcava a contagem regressiva da
volta , Emiel pressentiu : já se prenunciavam as chamas primeiras que
engoliriam , novamente, a Biblioteca de Alexandria. Ergueu alto o cálice de
Champanhe , contemplou a paisagem à sua volta, como a gravar na retina a última
foto , e fez o brinde derradeiro : Aos cúmplices de viagem ! Ao sagrado milagre da impermanência
! Aos deuses do acaso e do imponderável !
Aos irmãos siameses: Vida e Morte !
Ao pó : razão, origem e fim de toda
travessia !
---
Tim-Tim !
Crato, 10/01/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário