TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Tim - Tim !



    
J. Flávio Vieira

                               Taça elevada aos céus, como um Santo Graal, Emiel , sorriso nos lábios, sem quaisquer laivos de apreensão turvando-lhe o espírito,  brindou  os encantos da vida, o pudim de leite que é o  mistério de existir. A sala estava repleta de  amigos, companheiros do Clube de Atletismo,  e parentes, afinal tratava-se de uma celebração.  Não tão diferente daquela , muitos anos atrás, que lhe abriu as portas e janelas de um mundo novo, que se lhe desabrochava num milagre de pétalas e cores. Apercebeu-se, rápido, das muitas cláusulas  daquela viagem de bilhete único, de destino perfeitamente previsível e da inescrutável estação onde um dia, inevitavelmente, teria de desembarcar de alforjes vazios. A vida fora-lhe ofertada em consignação.  O segredo de tudo não estava, na verdade, no ponto obscuro do desembarque forçado. A viagem consubstanciava-se  na travessia, na paisagem mutante que caleidoscopicamente passava pela janela , no contato aleatório com os outros passageiros. Aos 95 anos , sabia  , perfeitamente, que havia chupado a doce fruta  até o bago,   sugara o mais que pudera da polpa e da seiva, restava-lhe  o caroço pronto para uma nova semeadura. Bastava olhar para o longo trajeto percorrido: os rios transpostos, as árvores bolinadas, os mares  navegados, as montanhas galgadas, os obstáculos transpostos, os muitos amigos acolhidos; e banhava-lhe aquela certeza : mesmo sem alcançar a meta sabidamente sempre inalcançável, tudo valera a pena pela busca do inencontrável.  Emiel Pauwers passara os anos correndo, literalmente, e terminou por se tornar o mais velho atleta da Bélgica. Em 2013, já combalido, ainda havia ganho o título europeu de veterano no Campeonato de Atletismo, na modalidade : 60 metros Indoor. 
                        Aceitou, resignado, o diagnóstico  frio que o médico lhe passou alguns dias depois de pôr a medalha no peito:
                        --- É câncer no estômago, Sr. Emiel e em fase terminal ! Curta bem este verão, viu ?
                        Havia alguma coisa de sádico naquele prognóstico. O médico parecia dizer-lhe, indiretamente :
                        --  Tchau ! Já basta de mamar na previdência do país! Você está burlando todas as estatísticas de expectativa de vida, não tem vergonha, não ?
                         No primeiro momento, saltou-lhe aquele instinto de preservação: E se o sacana do médico estiver errado ? O exame não terá sido trocado ? Com o passar dos dias, no entanto, vendo-se fragilizado, as forças se esvaindo pelo ralo das horas, conformou-se: estava, por fim, prestes a cumprir a última cláusula do Contrato de Consignação: deveria desembarcar na próxima parada ! Podia, claro, sentir-se apeado da vida, obrigado a abandonar o trem em plena viagem, mas compreendeu, rapidamente, que aqueles não eram tempos de semear ou de colher, mas de ressemear. Fechava-se o ciclo da existência. Percebeu, no entanto, que talvez a dor e a angústia  do desembarque poderiam apagar ou nublar a bela memória da travessia. Alguns dias de fel , quem sabe, arrancariam o  enlevo de toda viagem. UTI, dores lancinantes, Respiração Artificial : a Morte a crédito.  Estava, graças a Deus , na Bélgica, onde a morte  e seu séquito não precisam ser necessariamente crônicos , a tortura final da existência humana. Foi assim que , decidido, encomendou a eutanásia e reuniu todos os amigos , colegas e parentes naquela celebração. Queria-os testemunhas, acólitos  e convidados ao ritual.
                                    E, enquanto , gota a gota, espalhava-se na veia,  lentamente ,  o combustível  que, como um relógio anti-horário,  marcava  a contagem regressiva da volta , Emiel pressentiu : já se prenunciavam as chamas primeiras que engoliriam , novamente, a Biblioteca de Alexandria. Ergueu alto o cálice de Champanhe , contemplou a paisagem à sua volta, como a gravar na retina a última foto ,  e fez o brinde derradeiro : Aos  cúmplices de viagem ! Ao  sagrado milagre da   impermanência !  Aos deuses do acaso e do imponderável !  Aos irmãos siameses:  Vida e Morte !  Ao pó : razão, origem e fim de toda travessia !
                                               --- Tim-Tim !

Crato, 10/01/14

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