Pronto! Pendurei a minha meia furada no cabide de minha
consciência. Nela expôs uma carta à fonte do nascimento daquilo que eu sou.
Uma carta estranha. Como um lençol de retalhos. Costurados
com uma linha fraca que se solta a cada solavanco das minhas necessidades. A
carta para despedir tudo aquilo que forma o que sou. Tudo aquilo que,
continuamente, molda meu modo de pensar, sentir e agir.
Este tudo é que a sociedade de consumo e o “moto perpetuo”
do sistema que é dinâmico, contraditório e que assim nos faz a dominação
política e ideológica. Este sonho de plástico. A liberdade descartável do
capitalismo.
Amanhã quando acordar não quero mais figuras irreais, que
vivem no mundo da fantasia, na Lapônia gelada da Disneylândia. Eu quero meu pai
de carne e osso, humano como só ele pode. Detentor de princípios e dúvidas,
certezas e regras, mistérios e luz solar, quero este ser que é vivo como eu,
que tem medo e seguranças que se formam no dia-a-dia de cada ação.
Não quero mais beber os goles do outdoor desta bebida
estranha, que promove azia, que não se bebe pelo gosto, mas pela vaga promessa
que assim serei igual aos outros. Que assim aproveitarei mais a vida.
E a vida só precisa de um gole de água para matar a sede.
Não quero mais a propaganda que promete me libertar apenas para
que seja igual aos outros que consomem a mesma mentira. Prefiro sair com estes
amigos imperfeitos, igual a mim, que andam pelas ruas, curtem a luz plena, a
penumbra e gostam de ouvir as coisas que cantam.
Hoje devolvo às mãos do mito gerador deste natal de
mercadorias, onde não sei a minha posição se comprado ou comprador. Assim
devolvo todas as fantasias brilhantes e excrescentes que ao meu corpo tentam
confundir.
Devolvo o seu caldo ralo de felicidade, a sua incolor liberdade,
esta meia peça de roupa chamada autoestima, esta igualdade tão sólida quanto um
feixe de luz e esta exclusividade que mente para mim do amanhecer ao anoitecer
e perdura nos meus sonhos.
Devolvo todos os objetos de desejo que tentas colar às
minhas necessidades.
Amanhã a voz do pregoeiro já não mais ouvirei. Os meus
símbolos e signos não estão a serviço de suas vendas e agora desprego de sua
voz tudo aquilo que hoje me diferencia socialmente de alguém, segundo as
palavras dele.
O que me diferencia é exatamente aquilo que me iguala. E o
que me igual não pertence ao universo de suas palavras, não me venhas dizer que
preciso ficar atualizado com a moda, com a novidade, com o upgrade, com
qualquer coisa que não seja novidade porque extraída dos passos que dou na
vida, do encontro e desencontro que tenho de acordar e discordar.
Pegue seu carrão, com palavras inglesas no câmbio, no motor,
nos freios e enfie nos louros da ambivalência de promessas nunca realizadas. E
quando alguém apaixonado pela natureza, montar naquela máquina de lucros e
seguir lanhando a superfície das terras interioranas, como se fizesse algo
excepcional que não seja destruição de vida e distorção do amor à natureza.
Como lhe disse, eu sou. Se tenho é circunstancial. E mesmo o
que tenho se extensão de mim não é mais do que extensão de todos: a praia, a
cidade, a praça, os sertões, o açude, o pôr do sol, esta brisa agradável sob o
tronco da frutificação de uma cheirosa safra de cajá. O perfume do cajá eu sou.
Não tenho.
E sei da arapuca que é acumular, rodear-se de uma falsa
abundância de coisas. Eu nunca esqueci do meu amigo Guajenito, lá no Morro do Escondidinho,
no bairro do Rio Comprido. Ele juntando tudo que pegava abandonado e jogando
sobre o teto de seu barraco que vergava ao peso de tanto acumulado.
E pois termino por dizer que esta “democracia do ter não sendo
nada”, apenas objeto da máquina de produção e venda, não visto mais. E sei
porque não visto mais.
A grande maioria reza a oração do consumo sem se dar conta
que tudo é exaltação da mentira da abundância que não existe. Hoje mesmo, neste
natal, milhões de brasileiros passarão fome. E passarão fome porque toda esta
mitologia do consumo esconde o quanto tudo isso é um exercício perverso e infernal
da exclusão social e econômica.
Toda esta ideologia do mito e da fantasia é a forma
aceitável da exclusão. Até que a revolta se instale além da fantasia e desnude
o povo.
O rei não precisa desnudar. Ele não liga mesmo para a sua
nudez. Esta época até isso permitiu a ele.
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