Aos
prantos, ela se jogou ao pés do Frei Abelardo e implorou para que a
criança ficasse. Era mais um menino consagrado a São Francisco,
vestindo marrom desde o nascimento e que a mãe não tinha como
criar. Percebendo minha comoção, o superior aceitou, mas que eu me
responsabilizasse.
Aparentava
sete anos e se chamava Raimundim. Logo, os moleques o apelidaram
Perna-Santa – apesar do defeito, corria, driblava e chutava de
maneira surpreendente. Quem sabe, dali não brotasse um novo Chagas,
aquele que começou no Salesiano, brilhou no Treze, voou pra Roma e
envelheceu nos braços de uma condessa italiana. Mas, se ele ia bem
no futebol, na alfabetização era um desastre. Sempre o pior aluno,
jamais a pendeu a ler e a escrever, independente do esforço e de
diversas tentativas pedagógicas.
Com
o tempo, me convenci de que era impossível alfabetizá-lo e
ordená-lo frade. Além disso, como se agravaram o defeito na perna e
um problema na coluna, o sonho do futebol foi embora. No entanto,
sempre de batina marrom, adorava limpar o altar, tocar a chamada da
missa, responder ladainha, sacudir o turíbulo e estar à frente nas
procissões. Tornou-se um agregado da Igreja e virou irmão
Raimundim.
Memória
prodigiosa, ele sabia de cor os evangelhos e nenhuma liturgia lhe
faltava. Na Semana Santa, apoderava-se da matraca na procissão do
Senhor Morto e ficava a noite inteira ajoelhado na Sexta Feira da
Paixão. Ninguém na Ordem Franciscana conseguia acompanhá-lo, E
assim continuou até quando Frei Abelardo faleceu e eu fui promovido
a pároco.
Curvado
sobre a bengala, barba e cabelos brancos, Raimundim envelheceu
precocemente, tão longe aquele menino que eu vislumbrava um craque.
Ao saber que Bento XVI renunciou, ele se recolheu em orações,
aumentou as penitências, não comia nem dormia, cada vez mais
introspectivo e solitário.
Certo
dia, o Bispo convocou o clero pra orientações no período da
vacância papal. À tarde, quando voltei, percebi algo estranho, um
povaréu imenso ia da estação ferroviária à Igreja dos
Franciscanos. Mil fogos espocando, banda de pífanos, bacamarteiros e
maneiro-pau. O badalar dos sinos e um mar de braços erguidos num
ondular de chapéus e gritos ritmados de “temos Papa, viva o Papa,
temos Papa...”.
A
muito custo, atravessei beatas ajoelhadas e, penitentes em
flagelação. Cheguei à sacada da Igreja e constatei perplexo: era
ele mesmo, agora sem marrom, mas de batina, estola e solidéu
brancos. O crucifixo pendia do pescoço e Raimundim abençoava a
multidão que ecoava “temos Papa, viva o Papa, temos Papa...”.
Retomei
o fôlego, olhei no azul dos seus olhos e fulminei colérico: o que é
isso Raimundim, pode me explicar que loucura é essa ??? Sereno, ele
fitou-me com extrema gravidade e falou para que só eu escutasse:
Oxente, Frei Serafim, eu ia deixar os romeiros sem Papa ???
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