TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

DANÇANDO O BAIÃO - Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro (*)


Se não fosse uma mulher, o frio e a solidão do sul teriam destruído a minha crença no futuro e eu estaria no Nordeste, abandonando a pós-graduação. Eva, embora tão diferente de mim, para o bem ou para o mal, foi uma paixão avassaladora, o fato irresistível contra o qual homem nenhum poderia lutar.

O meu sogro ficou viúvo logo após o nascimento de Eva. Júlia Strauss, uma das tias paternas, alguns anos mais velha do que Eva, administrava a casa. Ele, Mr. Hermann, gostava de ser chamado assim, pois tinha orgulho de sua origem europeia e disfarçava a amargura da viuvez, refugiando-se no trabalho. Em São Leopoldo, praticamente mudara-se para a “Oficina Baviera” e tinha certeza de que a colonização portuguesa e a formação mestiça brasileira eram a causa irreversível do nosso atraso.

Um dia, ele se irritou quando lhe falei que enxergava exatamente o contrário. Na verdade, reverencio o gênio lusitano e os nossos antepassados, por um país tão grande, unido pelo idioma único e pela mistura de raças. Portanto, nada mais estranho do que eu naquela família, a contragosto vencida pela nossa determinação, pois meses depois eu e Eva estaríamos casados.

O velho se transformou quando Mathilde nasceu e ficou extremamente feliz ao batizarmos a sua primeira neta com o nome da avó. A mãe, as tias, os primos eram toda a atenção para a criança, mas o tempo passava e eu me sentia cada vez mais só.

Eva perdera o interesse pela profissão e Júlia Strauss, surpreendendo a todos, ingressou no curso de Ciências Sociais. Embora discreta, exibia, progressivamente, visível transformação. Não era mais a solteirona gordinha, voltada exclusivamente às questões domésticas, à sobrinha e ao bem estar do irmão. O terninho escuro, os cabelos presos e os óculos de aros grossos, deram-lhe um ar de professora, parecia uma intelectual. Em alguns fins-de-semana, ela vinha a Porto Alegre e ficava conosco, tinha cursos de imersão.

Eu seguia a minha vida com Eva, Mathilde e os estudos do doutorado. Às vezes, ainda mais só quando elas iam para São Leopoldo e eu não podia viajar. Num desses dias, Júlia veio para uma aula e noite de sábado, quando eu já ia me recolher, saiu bruscamente do quarto de hóspedes e invadiu a sala. Cabelo solto, olhos azuis, ela parou em frente a mim e atirou o roupão.

Completamente nua, eu fiquei maravilhado. Como não acreditar no Brasil se estavam ali os peitos duros, a bunda firme e a boceta envenenada? Nos intervalos, ela ria descontroladamente – como ela ria! - e cantarolava baixinho, conhecia Luiz Gonzaga e João do Vale, a música nordestina seria o tema da sua dissertação.

Mr. Hermann nos cobrou outro neto e Eva, encantada com a maternidade, só pensava no enxoval. Já não me sentia tão intruso e reconhecia o esforço da família para que eu e Júlia terminássemos o trabalho. Eva e Mathilde freqüentemente passavam os fins-de-semana com o avô, enquanto Júlia vinha a Porto Alegre levantar o material de pesquisa.

Decidi-me por um biocombustível e Júlia voltou-se sobre a autenticidade dos afetos no inconsciente nordestino traduzido na música popular. Necessitávamos um tempo de recolhimento para a redação final e um amigo de Mr. Hermann nos emprestou um chalé em Gramado. Assim, num último “tour de force, ficamos completamente isolados.


Na volta, nosso progresso e a defesa próxima das teses, foram comemorados com um churrasco. Quando Eva anunciou a gravidez, todos brindaram o novo neto. Mr. Hermann, alegre como nunca, convencera-se de que o sertanejo era, antes de tudo, um forte e fez questão de apresentar a nova cozinheira, Nilzete. Ao final, riso malicioso, a baiana me contou que mais uma Strauss estava interessada no Nordeste e sonhava aprender comigo como se dança o baião.


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(*) Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro é médico-cardiologista, natural de Missão Velha e atualmente residindo e exercendo o ofício em Fortaleza-CE.

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