Aconteceu em
fevereiro. O homem, cinza e sozinho, vagava pelo shopping quando
começou a algazarra. Da porta da livraria, ele observou o tumulto.
Era um rolezinho e o pânico se instalara: o novo-rico reclamou
zangado; a madame lipoaspirada escondeu as jóias; a patricinha
empalideceu e os lojistas apavorados fecharam as portas.
Enquanto os
seguranças assumiam posição de combate, moças e rapazes se
divertiam desafiando aquele espaço de exclusão e afirmando presença
no mundo. Simpático ao movimento social, meu amigo assistia a
manifestação com naturalidade, quando uma jovem irrompeu luminosa e
se dirigiu a ele.
A moça
tinha cabelo curto e olhos negros. Usava tênis, calça jeans e
camiseta realçando o busto. Como se de muito o conhecesse,
beijou-lhe a face, disse volta pra mim e retornou à turba.
Atordoado, ele a perdeu de vista e se integrou à confusão.
Daí em
diante, ficou desassossegado e não mais conseguiu dormir. Esteve
presente no protesto contra a construção do aquário e a destruição
da praça Portugal. Tudo era um descalabro e ele talvez a
reencontrasse. No caos, uma black bloc lhe acenou de longe, mas o
boné e o rosto encoberto impediram a identificação. Então, desde
o rolezinho, o meu amigo passou a viver outro mundo e cancelou o
baile da saudade: nenhuma menina iria curtir essa diversão outonal!
Adeus vida
de monge, vestiu uma camisa listrada e saiu por aí. Andou por todos
os bares. Na praia de Iracema era pré-carnaval. Obstinado,
atravessou o beijo gay e o beijo lésbico. Foi em busca do desfile e
se meteu no bloco da cachorra. Não viu a moça e se sentiu um peixe
fora d’agua: era mais um coroa ridículo no meio dessa multidão.
Exausto,
voltou pra casa e tomou um uísque duplo. Mergulhou na saudade e
lembrou aquela canção do Sinatra: “acho que nos encontramos
antes, sua roupa é a mesma e o mesmo é seu sorriso, a primeira vez
parece acontecer de novo, mas não consigo lembrar “Where or
When...” Lembrança de uma paixão arrebatadora e que nunca foi
correspondida.
Hoje, ele é outra pessoa. Mil vezes escuta essa música, mil
vezes assiste “Em algum lugar do passado” e a toda hora
repete que ainda encontrará a moça de cabelo curto, olhos negros e
camiseta realçando o busto. Quem sabe, numa sessão espírita,
talvez em terapia de vidas passadas ou antes de um internamento e
eletrochoque em algum hospital mental.
Passou o
carnaval, chove lá fora e o meu amigo desapareceu. Mas, do seu drama
e delírio, restaram muita inveja e compaixão.
(*) Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista)
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