Surpreso,
ele sofreu um impacto indescritível, quando a mulher, ainda jovem e
vestida de freira, entrou de repente e começou a falar:
“Vai
longe o tempo e sei que pareço ridícula com essa roupa, mas aprendi
que só a graça divina traz a qualquer um a razão de viver. Achei o
sentido e rezo para que também encontre o seu. Lembra que nos
conhecemos na mocidade? O colégio, a faculdade, o movimento
estudantil, a invasão da reitoria, como esquecer? Apesar de tudo,
vou em frente, caminhando, cantando e seguindo a canção.
Depois,
vieram os anos de chumbo e foi cada um pro seu lado. Eu continuei na
luta, fui pro Araguaia e entrei na clandestinidade. Quando Geraldo
caiu, me transferi pra São Paulo. Morei em favela e fui missionária
numa Comunidade Eclesial de Base até fechar-se o cerco e a partida
se tornar inevitável.
Em
Paris, acolheram-me em um convento. Vivi o drama de Tito e uma vez,
morta de saudade, lembrei da “Canção do Exílio” e
chorei um temporal. Mas, perdida a batalha, aos poucos, me despontou
a fé. Tantos anos depois, estou de volta. Virei a irmã Gertrudes e
daí esse hábito.
Agora
me diz, por que esse olhar reprovador? Não me faça ser cruel. A sua
profissão é como qualquer outra e você ainda não encontrou a
razão de viver. Na época da repressão, se revelou um estudante
acovardado, refugiado em livros e plantões. Logo depois de formado e
ainda hoje, se entrincheirou no trabalho, fugindo sempre, perdido na
indecisão. Naquele tempo, dizia que me amava, pensei que tudo daria
certo, mas você, assustado, tinha medo que nos vissem. Não era um
homem livre e nem sei se algum dia vai se libertar desse egoísmo
atroz.
Eu
estou suando, mas não sou estúpida nem faço nada errado, você bem
sabe. Não vivo enclausurada como lhe parece. A ação é o
fundamento da minha ordem. Nada de retiro e contemplação. À minha
maneira, como instrumento do Pai, no alívio da dor e da
desigualdade, faço a hora e ensino cidadania. Pouco importa os
desvios do caminho, o mensalão, o petrolão... Eu encontrei o meu
destino e peço a Deus, todos os dias, que lhe ajude a encontrar o
seu. Gostei de lhe ver e, vez por outra, relembre aqueles tempos, se
não for demais.”
Pálido
e confuso, o mundo girou e ele não disse palavra. Abraçou
fortemente a irmã Gertrudes, entre lágrimas e corações
disparados. E então, fecharam os olhos, deram-se os braços e aos
dezoito anos, desceram a avenida da Universidade, gritando “abaixo
a ditadura”, numa inesquecível passeata. Depois, era São Paulo, a
grama do Ibirapuera, o primeiro motel e, no show, a Elis Regina,
insuperável, cantando “Como Nossos Pais”.
De
novo em Fortaleza, houve o sorvete, o anoitecer e o caminhar de mãos
dadas, anônimos na Beira-Mar. Uma multidão os cercou e assistiu
espantada. Não mais pisavam o chão, não lembravam quem eram nem
onde estavam – subiram para a estrela acima e ninguém os via mais.
Uma vez,
sessenta e oito... A lua, a estrela, o céu, o mar... E as velas do
Mucuripe saindo para pescar.
Demóstenes Ribeiro - Cardiologista
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