Vestígios da Itália em Missão Velha - Dr. Demóstenes Ribeiro
Na calçada em frente,
suavemente ensolarada naquela manhã de maio, o Coronel dirigia-se ao
barbeiro. Terno branco, chapéu e guarda-chuva fechado à mão
direita, como se fosse bengala, ele lentamente caminhava. Baixinho e
gordo, um ar feliz envolvia o semblante bonachão, realçado agora
pelo domínio do alistamento nas frentes de serviço do DNOCS. Era a
seca de 58, ele controlava o PTB local e seriam muitas as vantagens
resultantes dessa missão.
A barbearia, parada
obrigatória na cidade, local sempre descontraído e de informação.
Todos a freqüentavam, exceto monsenhor Antonio Feitosa, ao qual o
barbeiro atendia com orgulho uma vez por mês na casa paroquial.
Semanalmente, o Coronel cortava o cabelo. Hipocondríaco, exigia
esterilização prévia da tesoura e da navalha, com álcool, em
chamas. Aliás, tamanho o seu temor de doença, no cinema
sistematicamente levava o lenço ao nariz ao assistir cena de
faroeste com muita poeira, por receio de ficar resfriado.
Sem a truculência de outros
caciques, jamais se ouviu falar de violência da sua parte ou de seus
comandados. Sua força política advinha da fidelidade extrema de uma
família numerosa e de agregados, isolados em região serrana do
município, parte mais alta e amena, onde o pai e antecedentes,
imigrantes italianos, estabeleceram-se em meados do século dezenove.
As urnas da Goianinha decidiam a eleição municipal.
Ao invés do sul do Brasil,
por que esses italianos escolheram Missão Velha, confins do Ceará?
Ao que se fala, emigraram de remota região da Itália, cheios de
sonhos, fugindo de violência e miséria. Ao chegar a Recife, o
patriarca, artesão, mestre na fundição do cobre, encheu-se de
esperança ao saber dos engenhos de cana-de-açúcar no Cariri,
espaço para o seu ofício e a sua arte.
Destinados à Goianinha, pouco
a pouco, a língua, o sotaque, quase todos os hábitos e tradições
foram sufocados pela cultura local. A pobreza nordestina foi mais
forte. Diferente do sul do Brasil, a geografia e o clima pouco se
assemelhavam à velha Itália. Entre outras coisas, sumiram a
culinária mediterrânea e a tradição do vinho.
A família cresceu
miscigenada, mas alguma coisa ficou. Cearenses a conservar modo de
vida que lembra aldeias e cidadezinhas da Itália. Os laços
familiares rígidos, o bom humor, o casamento entre primos, as
residências próximas, as mulheres pequeninas, muitas de olhos
azuis, discretas no vestir e no comportamento, apegadas à Igreja e
quando viúvas, de preto e lamuriosas. Acima de tudo, cordialidade e
alegria de viver contrastando com a agressividade local. Extroversão
expressa em vários deles pelo amor ao jogo de cartas, à diversão,
à bebida e à música popular.
Anos depois, em disputa com um
sobrinho, o Coronel não conseguiu fazer do filho o prefeito da
cidade. A luta pelo poder desagregou a família e ele partiu para a
serra paraibana, local de outros familiares; quem sabe,
inconscientemente atraído pelo clima vagamente parecido ao da
Itália. Todavia, diferente do pai, era, no quase exílio, imigrante
desesperançado, revolta e desilusão.
Envolvido em luta inglória
contra a realidade cruel, findou os dias em um mundo imaginário,
pleno de fantasia e recordação. Na rede, a mamma
entoava uma canção de ninar ou era o irmão Horácio a lhe embalar
o sono com uma ária napolitana de Caruso?
Houve a alegria
irreverente dos filhos no carnaval ou tudo não passou de uma velha
história de Veneza, contada por uma tia idosa na infância? Voltaria
ainda o prestígio dos anos atrás?
Muito tempo depois, o menino
que vira o homem gordo e baixinho, dirigir-se à barbearia, naquela
manhã de maio, observara um missãovelhense discretamente receber a
comunhão na Igreja da Paz. Sequer herdara o sobrenome italiano, mas
no comportamento cordial, reverente e cerimonioso, ele expressava
traços do tio e, talvez, de algum familiar distante, perdido em
aldeia remota da Sicília ou do Mediterrâneo.
Demóstenes Ribeiro -,Médico Cardiologista
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