A hora e a vez - Demóstenes Ribeiro (*)
Junho
sempre me deixa comovido e faz lembrar muita coisa. Uma delas foi a
mudança pra cidade, bem na onda do êxodo rural. Eu deveria estudar,
havia o ginásio noturno, e durante o dia com os meus familiares
tocaríamos a bodega.
Mas,
não foi fácil. Na aula de português, ler um texto em voz alta era
a maior tragédia. A professora não entendia porque eu tremia,
suava, ficava pálido e gaguejava. A classe inteira caía na risada e
finda a tortura do ditado, tudo voltava ao normal.
Bem
ou mal, recebi o diploma. Veio Fortaleza e o científico, hoje
segundo grau. A casa do estudante, a vida simples, o catre imundo, os
fins-de-semana de tristeza e solidão. Com a turma do interior, às
vezes passeava no centro e admirava a escada rolante do Romcy,
aquele antigo supermercado. Repetidamente os colegas a enfrentavam e
me gozavam porque nunca tive coragem de andar
naquele negócio.
Vinham as férias na cidadezinha e as noites frias de julho. O parque de diversões, Jerry Adriani, a canção italiana e “Io Che Non Vivo (senza Te)”. A mocinha de olhos azuis no carrossel de cavalinhos parecia gostar quando eu lhe olhava, mas nunca quis saber de mim – hoje, é viúva e avó.
Voltavam
as aulas e a casa do estudante. Tempo de vestibular. Com a aprovação
em Direito, mudei pra REU, a residência universitária. A
vida melhorava um pouco, mas ainda era precária. A menina bonita,
colega de turma e filha de deputado, era esnobe, fazia não me ver,
sequer me cumprimentava. E eu sem conhecer o meu lugar,
sofria em silêncio um amor platônico, muitíssimo apaixonado.
Enfim,
terminei a faculdade e nos vinte e cinco anos de formatura, foi bom
nos reencontrarmos. A abracei calorosamente e lhe surpreendi por ser
juiz federal. Recentemente divorciada, lhe falei do sentimento antigo
e terminamos num motel. Mas foi só aquela noite: o mundo dá muitas
voltas, eu me senti vingado e não lhe vi nunca mais.
No
geral, fui um vencedor, mas a velha escada rolante ainda me
atormentava. Fortaleza mudou, o Romcy fechou e ela foi
desativada. Hoje tem shopping centers com outras bem maiores.
Cansado
de terapia e de psiquiatra, preparei a batalha e a vitória. Convidei
o pessoal pra reviver os velhos tempos com uma comemoração no
shopping Rio Mar. Veio a turma antiga da REU e da casa
do estudante. Agora, empresários, médicos, engenheiros, advogados,
gente bem sucedida, enfim.
No
shopping, alguns ficaram junto a mim, dando força, e outros me
aguardaram no topo da escada. Antes, dei uma boa gorjeta ao guarda,
era meio-dia e, por um breve tempo, só eu poderia subir. Um, dois,
três... Vai doutor!
Aquela
gritaria, a escada em movimento e eu me senti outra vez na aula de
português. Estava trêmulo, pálido e suando em bicas. Pra não
cair, me acocorei no degrau que rolava e rolava acima por quase uma
eternidade. Afinal, de cócoras, cheguei ao topo. E os colegas me
levantaram entre palmas, vivas, assovios, é o maior...
Carregado
nos ombros, entramos na churrascaria lotada, e o pessoal, no rodízio,
perplexo e sem entender nada. Mas, cada um tem sua hora e sua vez.
Assim, diz a estória em Augusto Matraga.
(*) Médico-cardiologista, natural de Missão Velha e residente em Fortaleza.
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